Há poucos dias, algumas páginas, dessas que aclamam a truculência policial, publicaram imagens de um garoto, que não passava dos 17 anos. Na primeira imagem, ele portava arma no maior estilo “ostentação”. Na segunda, estava algemado, e a foto evidenciava a tatuagem de um palhaço em seu peito. Na terceira, e última, Mateus foi registrado morto com três tiros no peito. Não bastasse a exposição do garoto morto, um texto contava sua história:
“Mateusinho entrou para a vida do crime, tentou assaltar um policial, levou três tiros e morreu… FIM”
Por “algum motivo” achei a história de Mateus breve demais. Pensei, então, em outros fatores que o levaram a esse destino. Pensei em como esse “entrar para a vida do crime” surgiu na vida do menino. Formulei, portanto, outras hipóteses:
Primeira: Mateus – cujo sobrenome pode ser desses “nomão de rico”: Gomes Schneider, Fischer, Moreira Chaves – morava em condomínio de luxo, seus pais trabalhavam juntos na empresa da família. Todas as manhãs, sentavam-se juntos à mesa e tomavam um farto café da manhã, com suco de laranja, ovos mexidos, bolos, croissants, frutas e cereais. Tudo isso, servido pela ajudante daquele belo lar, uma mulher humilde, que usava uniforme branco e preto.
Aos domingos, os garotos do condomínio, alguns primos e colegas de escola brincavam com Mateus na piscina, jogavam bola, corriam pelo vasto quintal e se divertiam no Playground. Depois de um maravilhoso café da tarde, trazido pela ajudante uniformizada, iam jogar videogame em seu quarto.
Estudava nas melhores escolas, fazia inúmeras atividades extracurriculares: judô, Karatê, natação, violão. Inglês, esgrima…
Nas datas comemorativas, ou quando atingia boas notas na escola, ganhava brinquedos e aparelhos eletrônicos de ponta.
Um dia, Mateus pensou: “Que vida horrível! Vou entrar para a vida do crime.”. Assim, Mateus saiu de casa e tentou assaltar um policial, mesmo dizendo seu sobrenome e mostrando que seus pais tinham muito dinheiro, a polícia, sempre justa e imparcial, não perdoou o delito e, como punição, o garoto recebeu três tiros no peito. Terminando, dessa forma, sua história.
Diante a improbabilidade dessa história, formulei outra:
Segunda: Maria – De Jesus, da Silva, das Dores, de Souza, o sobrenome dos que não tês nome – era mulher muito humilde e trabalhadora. Ficou viúva ainda jovem, mesmo assim, criou seus três filhos, entre eles, o pequeno Mateus.
Maria saia de casa muito cedo, era “ajudante do lar” em um condomínio de luxo. Não tomava café da manhã com seus filhos, pois, logo cedo, deveria servi-lo a outra família, na casa onde trabalhava. Antes de sair de casa, acordava seus filhos que, ainda sonolentos vestiam seus uniformes para ir à escola. Todos naquela casa eram uniformizados, inclusive o irmão mais velho de Mateus, que trabalhava em uma gráfica, onde, como auxiliar de produção, ganhava R$ 1,70 por hora, o que, no fim do mês, lhe rendia quase R$500,00.
Na escola de Mateus não havia muito o que fazer, os professores, em sua maioria, já haviam perdido o prazer de lecionar. Os garotos da turma sempre fugiam das aulas, poucos se interessavam, sequer tinham uma quadra para praticar esportes. Alguns tinham celulares e tênis de marca, para estes, as meninas olhavam de um jeito mais especial.
Mateus queria um celular, como aquele que os colegas tinham. Maria não podia comprar.
Alguns colegas de Mateus – Filhos de Marias, algumas não muito trabalhadoras, algumas sem estrutura alguma, mas sempre Marias, sempre da Silva – descobriram um jeito “fácil” de conseguir aquilo que seus pais não podiam lhes dar. Ele viu que esses colegas ganhavam, em apenas um dia, mais do que seu irmão uniformizado ganhava em um mês. Mateus ficou fascinado.
Com o tempo, foi se aproximando daqueles garotos. A mãe, sempre trabalhando – inclusive aos domingos, quando servia lanche para o filho do patrão e seus amiguinhos à beira da piscina – não se deu conta do perigo ao qual seu filho se aproximava. Como via muitos garotos em seu bairro agindo de forma parecida, achou que era apenas uma fase. Quando Mateus apareceu tatuado em casa, Maria chorou, disse que era “coisa de marginal”, mas, desconhecendo a simbologia do palhaço, enxugou as lágrimas e correu para servir à família, não à sua, à do patrão.
Segunda: Maria – De Jesus, da Silva, das Dores, de Souza, o sobrenome dos que não tês nome – era mulher muito humilde e trabalhadora. Ficou viúva ainda jovem, mesmo assim, criou seus três filhos, entre eles, o pequeno Mateus.
Arrumava a cama onde o afortunado filho do patrão jogara videogame com os amigos, quando seu telefone tocou. Mateus, ao tentar assaltar um policial, fora morto com três tiros no peito.
Outras hipóteses para o Mateus pobre, morador de uma região de classe baixa são possíveis:
– Mateus nasceu mau caráter e, mesmo com uma família bem estruturada e carregada de valores, optou pela vida do crime. (Como sugere o curto texto elaborado nas páginas)
– Mateus vivia em um meio sem estrutura alguma, pai e mãe já envolvidos com a criminalidade.
Entre todas as possibilidades, acho a primeira bem pouco provável, também o simples “malcaratismo” do garoto não me parece muito possível.
Ao imaginar as histórias de Mateus, pensei em quantas pessoas têm suas histórias suprimidas. Junto à turma do “bandido com é bandido morto” somos coniventes com a barbárie. Nos omitimos enquanto morrem os “sem nome”, enquanto se tenta remediar o mal, ao invés de cortá-lo pela raiz. Deixamos que encurtem a história e a vida de milhares de Mateusinhos país a fora.