Nestas eleições municipais, a cidade de Curitiba volta a colocar a questão da mobilidade urbana nos holofotes públicos, em especial neste segundo turno. Segunda colocada entre os candidatos à prefeitura, o plano de governo da candidata da extrema direita Cristina Graeml (PMB) – que obteve 31,17% dos votos válidos – traz uma proposta de cobrança de tarifa nos ônibus municipais proporcional à distância percorrida pelos passageiros. Por essa lógica, trabalhadores que vivem em locais distantes de seus empregos pagariam uma tarifa maior que aqueles que trabalham perto de suas casas pelo mesmo ônibus. No debate entre os candidatos à prefeitura da cidade, ocorrido no dia 15 de outubro na TV Band, a candidata, quando questionada sobre a proposta faz uma afirmação que precisamos esmiuçar para pensar o papel da mobilidade urbana em nossa cidade:
“Mas a gente está visando é reduzir essa passagem abusiva de R$ 6 que o atual governo manteve. Os moradores do Tatuquara, assim como os moradores de vários outros bairros da cidade, vão ser estimulados a empreender e a trabalhar mais próximos de suas casas.”
É interessante observar a falta de senso de realidade acerca da cidade da qual Cristina pretende ser prefeita. Desde a década de 1970, quando a partir das gestões de Jaime Lerner (1971-75, 1979-84 e 1989-93) e sua equipe estruturada em torno do IPPUC – grupo do qual o atual prefeito, Rafael Greca, era parte – o planejamento urbano em escala metropolitana criou um anel de gentrificação e valorização dos terrenos ao redor do centro que, por meio de uma política extremamente autoritária, concentrou os equipamentos públicos de saúde, cultura, educação, administração pública, assim como a infraestrutura de trabalho em torno do centro da cidade. No processo de implementação do planejamento e reorganização de Curitiba, criou-se um processo de valorização do solo urbano que empurrou a massa de pobres viventes na cidade e aqueles que chegavam como migrantes do interior do Paraná para as bordas da capital, fazendo com que os núcleos mais pobres estivessem distantes de qualquer acesso no centro planejado. Conjuntos Habitacionais e loteamentos populares foram constituídos em locais na Zona Sul da cidade (em bairros como Boqueirão, Sítio Cercado, Vila Osternack, CIC, Bairro Novo, Tatuquara, entre outros); ou nos municípios próximos da Região Metropolitana (Colombo, Araucária, Almirante Tamandaré, entre outros) .
Na época, deu-se um passo ousado ao se pensar a mobilidade urbana por meio de um sistema de linhas de ônibus tido como bastante inovador, integrado em nível metropolitano. Quando se estabeleceram as empresas que operam as linhas municipais de transporte público, grande parte delas estava ligada à família Gulin. Estas recebiam – e ainda recebem – repasses em dinheiro da prefeitura por quilômetro rodado, ou seja, quanto maiores os trajetos realizados pelas linhas de ônibus, maiores são os lucros dos empresários. Isso fez com que o setor imobiliário se organizasse para vender loteamentos irregulares em zonas distantes do centro urbano, forçando a prefeitura municipal a levar linhas de ônibus para o novo núcleo urbano e aumentando ainda mais o rendimento das empresas de transporte.
O discurso de Graeml, além de mostrar que ignora ou desconhece a história da própria cidade que pretende governar, evidencia a continuidade de um projeto de cidade que cria um isolamento territorial dos pobres, criando barreiras para que estes acessem o centro urbano e os equipamentos ali concentrados. É comum que pensemos a mobilidade urbana apenas como uma ferramenta de acesso ao trabalho, e mesmo nesse pensamento restrito a proposta da “tarifa proporcional” já é bastante problemática. Mas o acesso ao transporte público é central para que estudantes cheguem às escolas, pessoas doentes cheguem aos hospitais, que se acessem políticas de trabalho e emprego, e inclusive para que se acesse o crédito necessário para que os chamados “empreendedores” da periferia possam investir em suas regiões de moradia. Enfim, podemos avançar na fala da candidata para ver o quanto se trata mesmo de uma exclusão dos pobres da cidade:
“O que a gente quer implantar é um sistema justo para que aquele idoso que sai do Centro da cidade. Esse morador do Centro que vai até o Alto da Glória ou até o Cristo Rei, um bairro mais ou menos próximo do Centro, ele paga a mesma passagem de um morador que vem da Região Metropolitana até o Centro da cidade para usar o nosso sistema de saúde, que inclusive é um problema nunca resolvido pelas prefeituras de Curitiba. Não é justo. Nós vamos implantar a passagem por quilômetro rodado. Isso é simples, já existe no exterior, é eficaz e é mais honesto”
Primeiro que desconheço países onde tal política seja adotada. Mas desconsiderando este fato, sabemos que os “idosos” que habitam os arredores do Centro da cidade são, em geral, funcionários públicos aposentados pertencentes à classe média curitibana. Isso, obviamente é uma generalização, mas consultar os dados censitários da cidade mostra que não há mentira ou leviandade nesta afirmação. O mesmo censo (2022) mostra um aumento de 76,7% nos imóveis vazios, concentrados na região Central da cidade que tem um déficit habitacional de 53,7 mil moradias. Ou seja, projetos habitacionais no Centro utilizando os imóveis vazios seriam mais que suficientes para suprir a demanda por moradias e, ao mesmo tempo, diminuir os deslocamentos dos trabalhadores das periferias para a região Central. Mas como disse e repito, trata-se de isolar os mais pobres nos bairros distantes, inviabilizando seus deslocamentos para os equipamentos urbanos do Centro da cidade.
Curitiba, que já apareceu como um modelo de transporte público e mobilidade urbana, já não pode levantar a bandeira da inovação neste quesito. O transporte público consome 17% dos gastos públicos do município e, ainda assim tem-se tarifas que sobem vertiginosamente, chegando a ser a capital com a tarifa de ônibus mais alta do Brasil: 6 reais. Os recursos com transporte são mobilizados e administrados por onze empresas, três consórcios, constituindo um dos setores mais cartelizados da administração municipal, sendo que o próprio município não apresenta qualquer controle de custo do sistema de transporte geridos elas.
Diversos municípios têm trazido boas novidades ao debater mobilidade urbana. Cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, muito maiores que Curitiba, apresentam um sistema de locomoção muito mais rápido e eficiente, que articula vários modais como ônibus, micro-ônibus, trens, metrô, ciclovias, entre outros. Poder pagar a mesma tarifa pra usar mais de um ônibus sem ter que fazer integração em terminais utilizando apenas uma tarifa, passe livre estudantil e para desempregados, entre diversas outras políticas têm se apresentado mais eficientes em organizar a mobilidade urbana em diversas partes do país e São Paulo, a maior cidade do Brasil, já discute de maneira séria instituir a tarifa zero – que já funciona aos domingos – como política à partir de 2026, independente do resultado das eleições deste ano.
Desta vez, nas eleições municipais de Curitiba, propostas como a de tarifa proporcional ao invés de propor avanços em torno deste setor tão estratégico da administração urbana, trazem um discurso ideologizado repleto de elitismo e preconceito contra os pobres. Tal fato nos coloca uma questão importante: até que ponto uma cidade que, através do planejamento urbano cria e recria a segregação – condomínios fechados, favelas, guetos, etc. – pode-se dizer uma “cidade modelo”, “inteligente” ou mesmo uma “cidade global”? A resposta talvez esteja na afirmação de que um planejamento que não intervém na estrutura social da cidade não é capaz de organizá-la a não ser para garantir a obtenção de lucro para os rentistas e proprietários fundiários, o que me parece estar por trás da proposta de Graeml.
A luta social, que a princípio pode evocar a um reformismo (direito à moradia, mobilidade urbana, reforma agrária, etc.), desenvolve, no próprio processo de resistência, uma consciência política que transcende a luta por direitos e muda seu sentido para uma luta por outra vida, um outro projeto de sociedade, onde enxerga-se mais claramente a luta de classes, e busca-se mudar a vida. É necessário recriar esta luta, se quisermos enfrentar discursos reacionários e elitistas lançados nesta eleição e impedir que se tornem política pública.
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