Por Mário Costa
Recai a noite e o canto companheiro, samba e choro, nas ruas escuras de pedra sabão do Largo da Ordem. Deslizam as mãos sobre as cordas, cavaquinho e violão ao centro, nas pontas pandeiro e uma caixa do divino. Na roda ecoam timbres agudos, doces, emocionados, cabelos longos, o batom, saia, salto e sandália. A mão batuca a mesa, outros dançam a sós, em par, 500 ml de chopp, cerveja, cachaça e harmonia, ao redor interessados e apreciadores se misturam à fumaça e ao som das Brejeiras.
No dia 22 de novembro a Roda das Minas, organizada pelo grupo as Brejeiras, recebeu a cantora e instrumentista Nilze Carvalho, no bar A Caiçara. Na primeira parte os tradicionais sambas e choros com Jacob do Bandolim, Ernesto Nazareth, Chico Buarque, Clara Nunes, dentre outros. Depois um breve intervalo, para nóis fumar um cigas, ir ao banheiro e encher o copo de 70% milho, 15% cevada e 15% água e outros componentes.
Nilze, na segunda parte da apresentação, incorporou-se à roda com virtuose, sutileza e o bandolim. Depois, no cavaquinho, ao apresentou composições de outros interpretes e próprias, como o Choro de Menina, composta em parceria com o pai aos 12 anos. Com a devida licença poética “um encontro de almas”. Ora as musicistas se entreolhavam, ora deixavam a música fluir num transe, gira de caboclo ou roda de samba. “Tive que segurar o choro várias vezes”, diz Gisele Fontoura.
O convite para a participação de Nilze surgiu por meio de um edital que acabou, infelizmente, não acontecendo. “Há alguns meses já vínhamos conversando, conhecia o trabalho das meninas antes, a rede permite que, mesmo longe, possamos acompanhar o que acontece de perto, ter uma ligação”, diz. A musicista veio à capital pela primeira vez, em 2009, no Teatro Paiol para participar com Julião Boêmio da apresentação que reunia a tradição do samba carioca com a nova safra de instrumentistas curitibanos.
O grupo as Brejeiras existe desde 2016 e segundo Beatriz Schneider (Violão 7 cordas) o nome foi retirado do tango brasileiro “Brejeiro”, composto por Ernesto Nazareth, em 1893, por Fontes & Cia. Este tango, de acordo com o Instituto Moreira Salles, até 2012 contabilizou 237 gravações em todo mundo, sendo a segunda música mais gravada de Nazareth, depois de Odeon.
Jô Nunes (voz e percussão) e Fernanda Fausto (flauta transversal, voz e percussão) participaram do grupo Vocal Gogó à Brasileira há 7 anos, mais ou menos. Fernanda e Beatriz fizeram faculdade juntas e, Beatriz, tocava com Gisele Fontoura (cavaquinho e voz) na Orquestra de violões Kilânio. Logo, após a Oficina de Música de 2015 decidiram montar um encontro entre mulheres para estudar choro e o samba “foi meio que inevitável”, diz Fausto.
O grupo dedica-se aos gêneros choro e samba, trazendo a mulher como protagonista do fazer musical. Para Nunes, o grupo traz representatividade para a mulher no samba e a importância da inserção num estilo musical em boa parte masculino, em relação à proporcionalidade de homens no samba. “Existem poucas mulheres fazendo samba e um grupo apenas de mulheres é muito mais significativo, à frente mesmo”, enfatiza a cantora Jô Nunes.
Denise Faria, integrante do grupo Maria Navalha, ressalta não apenas a importância de grupos femininos, mas também o resgate de compositoras que não tinham espaço. “Existia, existem muitas compositoras que foram invisibilizadas por muitos homens, pois na década de 30, 40, 60 não tinham espaço em nenhum lugar ou universo culturalmente falando, escreviam o samba e quem assinava era um homem, senão não era aceito. A mulher não tinha importância”, complementa.
Para Nilze Carvalho a mulher sempre esteve no samba e cita como exemplo Dona Ivone Lara compositora de sambas enredos que antes tinham a assinatura do Mestre Fuleiro, num período cuja figura feminina era privada de muitas coisas. “Faz parte de uma evolução, talvez pela época e no samba a coisa era forte num ambiente predominantemente masculino, Dona Ivone Lara é umas das nossas pioneiras que conseguiu ter o nome incluso nas composições e na escola de samba onde ainda mais fechado o negócio” explica. A cantora falou sobre grupos cariocas como Moça Prosa e É preta que possuem trabalhos importantes, no entanto, pondera que há conjuntos variados e mistos representando e dando visibilidade sendo o samba, um palco aberto.
Nilze participou de rodas de samba muito cedo levada pelo pai, figura importante na formação pessoal da cantora. Reflete a dificuldade da vida de músico, entretanto, ressalta a presença da família na formação pessoal. “Meu pai veio de Minas Gerais praticamente descalço com três anos de idade, só estudou até a quarta série é uma pessoa muito inteligente e minha mãe mal sabe escrever, no entanto, na cabeça deles os nossos filhos serão diferentes. Entrei na escola com cinco anos sabendo ler, escrever e fazer as quatro contas matemáticas, meu pai dizia: estuda. Lá em casa a coisa era assim”. E, complementa “a vida é dura se você não correr atrás, ninguém irá fazer por você, a gente luta para conseguir algo pela coletividade, mas não pode esquecer o individual”.
A cantora carioca gravou seu primeiro disco aos 11 anos e já teve a oportunidade de tocar com Dino 7 cordas, responsável por arranjos de músicas como Preciso me encontrar e O mundo é um moinho do mestre Cartola. Carvalho expõe que nunca teve dificuldade em entrar na roda de samba como mulher, negra, pois começou muito nova e era aquela coisa do prodígio, chamava atenção.
Porém, apesar do talento para música, o pai reforçava a importância do estudo. “Todos os meus irmãos sabem tocar, tiverem formação superior e escolheram seus caminhos professor, bancário…. e apenas eu e outro irmão seguimos na música e mesmo já tocando fiz faculdade, as pessoas diziam: O que você está fazendo aqui?”, comenta. O próximo passo na carreira da cantora é a gravação do CD e DVD “Nilze Ao Vivo” informação salientada com ênfase e muita simpatia durante o show, então, acesse o site e faça sua contribuição.
As Brejeiras encerraram a noite com o Canto das Três Raças presente no repertório do grupo e de Nilze Carvalho. Nas primeiras apresentações no bar do Fogo, onde as pessoas ficavam com um pé dentro e outro invadindo a calçada, a rua e com a Caixa do Divino, instrumento tocado por mulheres na Festa do Divino, fazendo o grave do Surdo e ditando o tempo. A Roda das Minas se demonstra um espaço aberto contando com a participação de Roseane Santos, Gabriela Bruel, Marcela Zanette, Denise Faria, Carlos Malta, Matê Magnabosco, Jonas Lopes… entre amigos e convidados. Enfim, um espaço democrático.
A Roda, com as Brejeiras, acontece todas as quartas no Bar A Caiçara em frente ao Memorial por volta das 19h00 até perto do último madrugueiro para o bairro Paineiras, 23h e pouquinho. O público ecoou com palmas ritmando o canto do povo das raças miscigenadas que formaram o Brasil o índio, o negro e o branco e, por fim, no tardar da noite o samba e o choro deram lugar a euforia e ao silêncio. Nas palavras de Jô Nunes “estamos emocionaaaadas”.
Fontes:
- As Brejeiras
https://www.facebook.com/brejeiraschoro/
- Nilze Carvalho
https://www.nilzecarvalho.com.br/
- Tango Brasileiro Brejeiro
https://www.ernestonazareth150anos.com.br/Works/view/31
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