Para se chegar à Aldeia Araça-i, na cidade de Piraquara, é necessário agendar uma visita. O contato com os indígenas é feito por meio do Departamento de Turismo da Prefeitura Municipal. Na maioria das vezes quem conduz o passeio, que costuma levar dezenas de estudantes do ensino fundamental para conhecer a aldeia, é Jefferson Favoreto Klass, da Secretaria de Meio Ambiente, Agricultura e Turismo. Mas, dessa vez, quem serve de guia para nossa visita é o motorista Milton Vargas. Antes de sairmos Milton, funcionário municipal há dez anos e que já foi a Araça-i dezenas de vezes, explica algumas regras básicas de “etiqueta”. “Olha, eles são um pouco tímidos. Provavelmente quem vai falar com você é o cacique Laércio. Podemos circular por toda a aldeia, pode fotografar tudo, menos a Casa da Reza”, avisa.
Perto das 9 h pegamos a estrada. A Kombi da prefeitura, guiada por Milton, vai na frente. Nela, vai uma pedagoga que pretende agendar uma visita para sua escola, além de duas funcionárias do Departamento de Turismo. Cerca de vinte quilômetros separam a aldeia do centro de Piraquara. A estrada, descrita por Milton como “um tapete”, demanda baixa velocidade para a preservação do sistema de suspensão de qualquer veículo, exceto os jipes que têm tração nas quatro rodas. Aos poucos a paisagem muda e, além das copas das árvores que deixam a rua cada vez mais sombreada, vê-se apenas algumas porteiras de chácaras e placas que indicam a direção dos bairros mais afastados do município. Milton cumprimenta um dos vigias na portaria da Represa de Captação de Águas de Piraquara. Alguns minutos depois e a Serra do Mar se mostra imponente. Mais cem metros e as primeiras casas da Aldeia Araça-i começam a aparecer.
O primeiro contato com a aldeia traz um “choque de realidade” imediato. A fumaça, feita pela fogueira acessa na entrada, faz os olhos lagrimejarem. Ao descer do carro percebe-se que as crianças são maioria absoluta em Araça-i. Três casas de pau a pique se destacam entre as demais que são feitas de madeira e têm chão de terra batida. No total, 17 moradias abrigam os indígenas, todas têm luz elétrica e água encanada. Dezenas de cachorros se coçam ao lado dos indiozinhos que jogam futebol. Na frente de uma das moradias, o pajé Marcolino da Silva e sua esposa fritam tilápias pescadas na noite anterior. “Nossa, me deu fome agora”, diz Milton Vargas. Laércio, cacique da aldeia e porta voz oficial em dias de visita, não está. Milton nos apresenta então à vice cacique Florinda da Silva. A segunda autoridade na hierarquia da tribo é uma senhora de meia idade, veste blusa vermelha e saia preta. Um colar tipicamente indígena, os cabelos lisos e pretos e os olhos puxados, são as únicas características que a distinguiriam das demais pessoas em qualquer cidade. Aliás, está redondamente enganado quem acha que na aldeia de Piraquara existem índios seminus. Esse costume foi abandonado por eles há muito tempo.
A aldeia, que foi fundada há 12 anos, quando os índios vieram da cidade de Mangueirinha na região sudoeste do Paraná, tem hoje 86 habitantes. Além das casas há também um ambulatório, a Casa da Reza e a escola Mbyá Arandú- Sabedoria Guarani. Mesmo muito tímida, a vice cacique se esforça para passar as informações sobre o lugar. Enquanto ela acerta os detalhes de uma troca de visitas entre alunos da tribo e estudantes de uma escola de Piraquara, Milton Vargas mostra um pouco mais do local. Uma pequena volta revela mais cachorros deitados ao redor das casas. Entre eles, sobre um velho lençol, uma jovem capivara se aquece na fria manhã de junho. “Ela apareceu aqui ainda filhote, fomos alimentando ela que acabou ficando”, conta o pajé. Dezenas de capivaras habitam as margens da represa que passa a poucos metros de Araça-i. Segundo Milton, a presença dos grandes roedores atraí algumas onças à região. “Dizem que tem, mas eu nunca vi”, diz Florinda, dando pouco crédito à informação. Entre os animais que vivem na aldeia ainda estão patos, galinhas e o Cirilo. Amarrado na coluna de uma das casas ele come cascas de frutas enquanto pula de um lado para outro. Assim como a capivara, o macaco prego apareceu em Araça-i ainda filhote, mas precisa ser preso por uma corrente para permanecer como integrante da tribo.
Programas sociais e escambo como forma de sobrevivência
Mais de 90% do território de Piraquara é protegido por leis ambientais. Em Araça-i, essa proteção, que visa preservar a água das represas do município, impede os índios de plantar. No entanto, eles podem caçar e pescar. Mas, a impossibilidade de trabalhar na terra, de gerar o sustento da tribo por meio do plantio, traz duras consequências aos índios. Hoje, os 86 indígenas do lugar vivem da venda de artesanatos, de programas sociais como o Bolsa Família e das doações dos visitantes. Uma espécie de escambo, tão comum entre brancos e indígenas no início da colonização do Brasil, serve como um dos recursos do qual Florinda e os demais se valem para manter a aldeia. “Tenho muita vergonha de precisar pedir doações das pessoas que vêm visitar a tribo. Mas, é uma maneira que nós encontramos para sobreviver”, revela a vice cacique, sobre as doações de roupas e alimentos que são obrigatoriamente trazidas por todos que visitam Araça-i.
Para Edívio Batistelli, indigenista da Fundação Nacional do Índio (Funai), a realidade vivida pelos moradores de Araça-i é a mesma de outras aldeias do Paraná. “Os índios de Araçá-i sem dúvidas nenhuma enfrentam dificuldades, restrições, na medida em que ocorre o impedimento parcial de viverem enquanto povo, pelas limitações territoriais impostas. Esta condição não será jamais resolvida via programas sociais de governos ou de qualquer origem”. Segundo Batistelli, o cultivo da terra é necessário para a sobrevivência física e cultural das sociedades indígenas. “Os Guarani representam uma sociedade de agricultores primitivos. Precisam de três espaços, quais sejam: o local da casa e da aldeia; em volta das casas e da aldeia onde cultivam culturas diversas para a subsistência; e, o terceiro espaço, de perambulação e coleta de matérias primas. Para esta etnia, Tekohá é aquela porção de terra onde o modo de ser Guarani se reproduz e se manifesta”, revela.
Em meio à pobreza da aldeia existe um ambulatório médico. O local é pequeno e tem aparelhos e medicamentos suficientes apenas para atendimentos básicos. Quem toma conta do lugar é a índia e técnica em enfermagem Sueli de Oliveira. A pequena enfermeira, de jaleco branco e aparelho de medir pressão nas mãos, conta que as condições de trabalho no ambulatório já foram melhores. “Antes nós trabalhávamos em duas enfermeiras e um médico vinha uma vez por semana. Hoje, apenas eu trabalho aqui, mas o médico continua vindo”. Sueli diz ainda que a maior parte dos atendimentos são feitos em crianças vítimas de pneumonia. A índia ainda revela que a visita dos “brancos” pode trazer novas doenças à Araça-i. “Em 2010 tivemos um surto de coqueluche, uma doença de brancos”.
O Departamento de Turismo da prefeitura de Piraquara revela que é realizado semanalmente, por meio da secretaria de Saúde, um atendimento com enfermeiros capacitados e agentes estão presentes também nas campanhas de vacinação e no acompanhamento de gestantes.
Do petynguá à internet: a luta de Araça-i para manter vivas suas tradições
Os indígenas de Araça-i são da etnia Guarani. Eles pertencem ao subgrupo M’byá, seu ethos tribal é religioso. Segundo Edívio Batistelli os Guarani perderam quase todas as terras no cone sul, mas, preservaram muito de sua cultura. “Podemos afirmar que eles resistiram ao processo de ocupação não índia heroicamente, enquanto povo etnicamente distinto”.
Mesmo não andando seminus e empunhando arco e flecha, os índios de Araça-i lutam para manter vivas suas tradições. Nossa visita, no mês de junho, coincidiu com o período de preparação para as homenagens aos seis anos de falecimento de Nerá-Tupã. “Ele era nosso cacique quando viemos morar aqui. Era o pai do Laércio e fazemos todo ano essa cerimônia para preservar sua memória”, conta Florinda.
Além das três casas de pau a pique, a Casa da Reza é outro local na aldeia que preserva muito dos costumes da tribo. Lá, os índios rezam, cantam, dançam e tocam instrumentos. Como o restante das construções a Casa da Reza tem chão de terra batida. O teto preto, por conta da fumaça gerada pelas constantes fogueiras, e a ausência de janelas, dá ao lugar um aspecto sombrio. Na parede, pendurados ao lado de alguns colares, estão torós (flautas de taquara), mimbis (buzinas), um baixolão, uma rabeca, um uaí (tambor de madeira) e um petynguá (cachimbo fumado em ocasiões especiais). Em um dos cantos da casa uma cama com um colchão velho, ao lado de um criado mudo, sobre o qual está um pente, além de um desodorante roll-on, mostra que o local serve também para a pernoite de alguns índios. “Ela é usada por alguns índios que pagam promessas na Casa da Reza”, opina o motorista Milton.
As tradições também são mantidas vivas na escola de Araça-i. Nela, 28 alunos aprendem matemática, história, geografia e as demais matérias comuns ao currículo de qualquer estudante, além do Tupi-guarani. Preservar o idioma é, segundo Cintia Bach, pedagoga que trabalha na aldeia, uma das prioridades da escola. “Aqui na escola temos cinco professores que vêm de fora e cinco daqui. Trabalhamos com planejamentos de projetos que visam aliar ensino fundamental e básico com a preservação das culturas indígenas”. O Tupi- Guarani é falado por todos na aldeia. A Funai revela que muitos dialetos estão se perdendo. Das 180 línguas indígenas ainda faladas no Brasil, 115 têm menos de mil falantes. Apenas quatro são faladas por mais de 10 mil pessoas e nenhuma delas tem mais de 20 mil praticantes.
Mas Araça-i também não resistiu aos confortos e à comodidade que os avanços tecnológicos trouxeram. No interior de uma das casas é possível ver dois indiozinhos se divertindo com o desenho do Pica-Pau. Mais a frente um dos índios mexe no celular. O único local em que o telefone móvel possibilita ligações é em cima de uma pedra, na entrada da aldeia. Já o cacique Laércio da Silva, que não estava na tribo, foi procurado pela reportagem por meio de seu email werakangua@….com, mas como a internet na aldeia é via rádio, e provavelmente ele acesse seu email apenas na Universidade Federal do Paraná (UFPR), local onde é graduando em sociologia, a entrevista não aconteceu.
Índios em Curitiba e Região Metropolitana
O Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que o Paraná tem mais de 25 mil índios. Destes, 20.929 moram no interior e 4.986, na Região Metropolitana de Curitiba. A prevalência é de população jovem (até 24 anos), com 48%. Já os índios que hoje vivem na capital se espalham por 72 dos 75 bairros existentes. Com uma população estimada em 2.693 pessoas pelo Censo, os indígenas representam pouco mais de 0,15% dos 1,7 milhão de moradores da capital. Dispersos no meio urbano, os índios estão mais concentrados na Cidade Industrial (318), Sítio Cercado (238), Cajuru (152), e Alto Boqueirão (114). Além de Araça-i, o bairro Campo de Santana abriga 133 índios na aldeia Kakané Porã.
O mesmo Censo revelou que o Brasil tem 896,9 mil indígenas em todo o território nacional, somando tanto a população residente em terras indígenas (63,8%) quanto em cidades (36,2%). Do total, 817,9 mil se autodeclararam índios no quesito cor ou raça e 78,9 mil, embora se declarassem de outra cor ou raça, principalmente parda (67,5%), se consideram indígenas pelas tradições e costumes.
Entre as regiões, o maior contingente está na região Norte (342,8 mil indígenas), e o menor, no Sul (78,8 mil). Considerando a população indígena residente fora das terras indígenas, a maior concentração está no Nordeste, 126,6 mil.