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Aqueles que se negaram a repetir a história

 

O dia da consciência negra, institucionalizado em 2011, é uma homenagem a Zumbi dos Palmares, morto em 1695. A data é lembrada nacionalmente. Nas escolas, alunos pintam cartazes, em alguns municípios é feriado, políticos fazem discurso. Depois disso, tudo é guardado e esquecido, para ser lembrado no ano seguinte. Há quem diga que ter um dia para a consciência negra é reforçar o racismo que todo brasileiro nega a ter. Negar o racismo e outros preconceitos é uma habilidade desenvolvida desde criança, quando alunos pintam o rosto de guache preta para simbolizar alguma coisa que nem eles, nem os professores sabem direito o que é. Após os alvos rostos serem lavados, todos voltam à rotina das expressões “segunda é dia de preto”, “fazer negrisse”, “denegrir”. Obviamente condenar as novas gerações pelo racismo que é incumbido nelas não é tratar do problema e sim, mais uma vez, desviar e fingir que não é consigo. Racistas sempre são os outros.

Olhar o dia da consciência negra a partir deste prisma caricato e reducionista é, sem dúvida, reforçar o racismo deplorável na mentalidade brasileira, sobretudo, é enaltecer a hipocrisia de se dizer que vivemos em um país pluralista, onde todos se aceitam amigavelmente. A data obviamente deve ser lembrada, não para conscientizar o óbvio, que existem negros na sociedade e que historicamente foram negros os braços que fizeram o trabalho que os brancos não queriam fazer, mas para conscientizar, em forma de denúncias, que 13 de maio de 1888 ainda não se consumou.

Afinal, o que nos revela tal data? Qual é a alma do 20 de novembro? Folhando as “Trovas Burlescas” do insubordinado Luiz Gama eis que se encontram os primeiros versos do soneto “Mote”

“Sou nobre, e de linhagem sublimado

Descendo, em linha reta dos Pegados,

Cuja lança feroz desbaratados

Fez tremer os guerreiros da Cruzada!”

Luiz Gama

Luiz Gama

 Essa estrofe, representando a linhagem de Gama, mostra muito mais em suas entrelinhas. A descendência do autor é de colocar qualquer poderoso em estado de alerta. Luiz Gama era filho de Luíza Mahin, uma das líderes da Revolta dos Malês. Luíza era negra alforriada e casou-se com um fidalgo português. Após uma delação, a revolta surgiu de forma desorganizada, o que facilitou para ser sufocada. Luíza teve que fugir, após sua participação em outra revolta, a “Sabinada”, e deixar o filho com o pai que o perdeu em uma dívida de jogo. Luiz Gama, que era livre, foi feito escravo e levado a São Paulo por contrabando, uma vez que era proibida a venda de escravos baianos para outros estados. A venda do menino era um crime em dose dupla: por ser baiano e por ser livre. Por ser mercadoria contrabandeada, foi de Santos a Campinas a pé.

Permaneceu até os 17 anos analfabeto, aprendeu a ler com um hóspede que frequentava a casa onde que exercia seus serviços. Aos 18 anos, conseguiu a documentação que provava que era livre. Obtendo a carta de alforria, foi trabalhar na polícia, mas foi demitido por insubordinação. Gama tinha o sonho de estudar direito, frequentou algumas aulas como ouvinte e, às vezes, até pela janela, mas por ser negro e pobre foi por diversas hostilizado e ridicularizado pelos cultos moços brancos. Fez seu caminho por conta própria, teve acesso à biblioteca do professor Furtado de Mendonça. Não perdeu tempo: leu todos os livros. Ficou conhecido como Spartacus brasileiro, por salvar da escravidão mais de 500 negros. Agindo, juridicamente, como jornalista e poeta, Gama utilizou de tudo para a libertação dos seus semelhantes. Após o expediente nos jornais onde trabalhava, pedia esmolas para comprar cartas de alforria. Luiz Gama, apesar de nunca mais ter visto sua mãe, levou para toda a sua a vida seus ensinamentos e seu ideal de liberdade.

Luiz Gama não aparece nos livros de história, toda sua luta pela abolição, assim como a de outros vários, é covardemente negligenciada, de forma que a lei Áurea pareça uma bondade dos brancos para com os negros. Pouco se ouve falar de Francisco José do Nascimento, o “Dragão do mar” que bloqueou com jangadas o Porto de Fortaleza para intimidar os contrabandistas de escravos em 1882.

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Marli Mulher

Já no século XX, precisamente em 1979, Marli Pereira dos Santos assistiu ao assassinato de seu irmão por um grupo de extermínio formado por policiais militares à paisana. Ambos negros e pobres, em pleno regime militar. Socialmente, a força de Marli era ínfima. Além de pobre, moradora de bairro periférico e negra, tinha o agravante de ser mulher. Não se amedrontou, prestou queixa e travou uma luta desigual com donos da verdade. Devido a sua insistência em exigir punição para os algozes, sofreu ameaças de todos os tipos. O pobre barraco onde morava com a família foi incendiado. Movimentos sociais reforçaram a voz de Marli. O caso ganhou a parte da imprensa saturada pelo regime. O apelido de Marli Mulher se espalhou. Após muito tempo e entraves judiciais de todas as ordens para atrapalhar as investigações, a PM resolveu apresentar os policiais para reconhecimento. O detalhe é que fora feito de forma totalmente diferente do que manda o figurino. Os soldados, armados em fila no pátio, e Marli tinha o desafio de olhar nos olhos de todos e, com uma chuva de insultos e ameaças cara a cara, ter coragem para apontar os assassinos. Marli assim o fez. Uma mulher, negra e pobre enquadrava o regime militar brasileiro. Marli afirmava que tinha pavor de barata, mas nem um pouco de medo da polícia. Os soldados reconhecidos foram julgados e condenados.

Esses poucos exemplos – grandiosas histórias perdidas no tempo, e tão enfraquecidas em nossas memórias, carecidas de heróis nacionais – mostram que o dia da consciência negra deve ser celebrado, e, principalmente, fazer lembrar tudo aquilo que a versão açucarada da história brasileira se esforça para que esqueçamos. O dia em que Zumbi não morreu, pois, sua causa, coragem e luta ainda permanecem incendiando os espíritos daqueles que se negam a repetir a história. Vivo em toda voz que ecoa nos versos desta cantiga quilombola:

“Eh, meu pai quilombo eu também sou quilombola
A minha luta é todo dia e toda hora
Eh, meu pai quilombo dizem que Zumbi morreu
Zumbi está vivo nos que lutam como eu”

 

About Rafael Pires de Mello

Rafael Pires de Mello é formado em filosofia pela UFPR, gosta de inutensílios como cinema,literatura,música e é claro o maior de todos, filosofia. Tem a tendência de chorar com música romântica quando bebe demais.