Há exatos 45 anos, no dia 29 de janeiro de 1980, o cacique Ângelo Kretã dirigia um fusca vermelho em direção à aldeia de Mangueirinha, na Terra Indígena localizada no Sudoeste do Paraná. Com ele viajavam três soldados da Polícia Militar. A segurança era necessária porque Kretã tinha muito inimigos. Os havia colecionado ao longo de toda sua história de subversão como maior liderança indígena de sua época. Tinha expulsado posseiros nos três estados do Sul. Estava em disputa judicial contra a Família Slavieiro, batia de frente com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, com o governo estadual e o federal. Recebia muitas ameaças de morte. Algumas vinham pelo rádio, outras passavam de boca em boca.
Numa curva, o fusca bateu de frente com uma carreta. O motorista, interrogado minutos depois, disse que entrara na contramão porque precisou desviar de um veículo parado no meio da pista. Atrás do carro, como revelou, estavam quatro homens armados que pareciam esperar alguém que vinha em sentido contrário.
Ângelo Morreu dias depois, aos 37 anos de idade.
Na época, a Funai confirmou, em nota, que a morte do cacique Kretã “foi decorrência de um acidente de trânsito”. No entanto, o presidente do órgão, o coronel João Carlos Nobre da Veiga, em contradição à nota, afirmou, dias depois, que “até que haja prova concreta, acredito que há intencionalidade por parte de pessoas interessadas em eliminar esses índios”.
A morte de Kretã repercutiu por todo país, como mostrava reportagem do Globo Repórter na época:
Ângelo Kretã nasceu no Posto Indígena Cacique Capanema, em Mangueirinha, no dia 12 de dezembro de 1942. Era filho de Balbina da Luz Abreu dos Santos e de Gentil José de Souza Pinto. Seu pai era um professor não indígena que abandonou sua esposa e seus filhos indígenas para retornar a sua cidade natal onde constituiu uma família “branca”. Pelo lado materno, Ângelo descende de uma antiga linhagem Kaingang. Sua avó era a indígena Maria Joaquina de Abreu, filha do major Antônio Joaquim Kretã e irmã do cacique Capanema.
Os indígenas chegaram à Mangueirinha em meados de 1890 para ajudar na construção de uma estrada que faria a ligação entre os campos de Palmas à colônia militar do Chopinzinho, na mesma região. Assim, sob o comando do cacique Antônio Joaquim Kretã, a mão de obra indígena foi contratada pelo governo do Paraná, que à época ainda era província de São Paulo. Ao efetuar o pagamento pelo serviço, o governo foi surpreendido pelos indígenas. Aconselhados por uma matriarca, os kaingangs não aceitaram dinheiro, pois esse o tempo leva, queriam a terra, porque essa seria dos filhos, dos netos e dos bisnetos. E assim foi feito, em 1905, no início da República Brasileira e no governo paranaense de Xavier da Silva, os kaingangs receberam oficialmente, de papel passado, a posse das terras.
Na infância, Kretã já sentia toda a opressão do estado e percebia qual era a sina de ser indígena. Em 1940, em plena vigência do Estado Novo de Getúlio Vargas, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que havia surgido em 1911, criou o Posto Indígena Cacique Capanema, na área onde José Capanema liderava uma comunidade Kaingang. Esta mesma política indigenista do estado brasileiro, que transformava antigos aldeamentos em postos indígenas do SPI, também trazia consigo outras implicações sociais que afetavam os indígenas. A partir deste momento histórico, lideranças tradicionais (como o cacique Capanema) perderam espaço político para os “chefes de Posto”, que passaram a impor sua autoridade sobre os “povos tutelados”.
Em 1949 os indígenas de Mangueirinha sofreriam mais um duro golpe. O governo de Moysés Lupion, político ligado às elites econômicas e considerado o homem mais rico do país em 1940, reduziu significativamente a terra dos Kaingangs, ignorando a legalidade da posse das mesmas. Além do Posto Indígena Cacique Capanema, houve também reduções em terras de indígenas de Guarapuava, Ivaí, Faxinal, Rio das Cobras e Cândido de Abreu, totalizando uma subtração de mais de 150 mil hectares.
Assim, os indígenas no Paraná foram confinados pelo governo estadual com anuência do governo federal a apenas um terço das áreas originalmente demarcadas. Em Mangueirinha foram exatamente 8.975,76 hectares expropriados, a chamada “terra do meio” como se referem os indígenas, por meio do acordo entre o governo Lupion e o Ministério da Agricultura/SPI para fins de localização de imigrantes e colonização.
Após subtrair esta grande extensão do território indígena, o governo estadual repassa a área ao madeireiro Osvaldo Forte, sócio do então jovem deputado Aníbal Cury. Além do grupo Forte-Cury, outros 37 colonos adquiriram pequenas propriedades naquela região. Estranhamente, em 26 de fevereiro de 1961, o grupo Forte-Cury e todos os colonos, de modo conjunto, venderam a cobertura vegetal das terras da Gleba B, para Ercílio Slaviero & Outros. Na data de 03 de março de 1961, as terras que os colonos receberam para ocupar e cultivar, foram alienadas à empresa F. Slaviero &Filhos S/A – Indústria e Comércio de Madeiras.

Nos anos de 1960, os guaranis e os kaingangs de Mangueirinha, assim como os de Rio das Cobras, lutavam contra muitos inimigos, incluindo o próprio governo. Suas lutas eram para conservar sua língua, seu sumo, guardar seus costumes que estão na raiz da humanidade e que são anteriores à escravidão, aos patrões e empregados, aos ricos e pobres. Ângelo Kretã, que tinha ficado fora de Mangueirinha por um bom tempo, retorna e começa a liderar a comunidade contra a tirania do regime Funai.
Em 1963 Kretã tinha vinte anos de idade e havia decidido deixar a casa de seu tutor, para voltar a viver junto com seus parentes índios. Passou então a liderar o movimento pela retomada da área central da Terra Indígena. Uma causa justa que uniu parentes antes afastados, e aproximava também os Kaingang dos Guarani.
Sua gestão como cacique do Posto Indígena de Mangueirinha foi marcada pela luta por terra, incluindo a esfera judicial, onde contou com respaldo dos advogados da FUNAI. Em 1974, por iniciativa de Ângelo iniciou-se uma luta judicial pelas terras a empresa Slaviero. Os Kaingang e Guarani foram vencedores em primeira instância, mas em setembro de 1979, o juiz Lício Bley Vieira, da Segunda Vara da Justiça Federal em Curitiba deu ganho de causa a empresa Slaviero & Filhos.
Vereador
Em 1975 Ângelo aceitou o convite de um dos candidatos majoritários do MDB à prefeitura de Mangueirinha e lançaria sua candidatura como vereador. Ele era oposição e sua escolha foi questionada por políticos da Arena, como também eram questionados seus direitos como cidadão. Os opositores alegavam que Kretã era um índio Kaingang teoricamente sob tutela do Estado, por isso não poderia concorrer a uma vaga no legislativo.
A pressão foi grande, muitos obstáculos criados pelos adversários fizeram com que Ângelo chegasse a pensar em desistir. Corria, na época, boato de que ele havia retirado sua candidatura. Mas era apenas um recuo estratégico. Uma atitude de defesa diante das ameaças vindas de políticos influentes, comprometidos com os interesses dos madeireiros. Com apoio da assessoria jurídica do Movimento Democrático Brasileiro, levou adiante sua postulação política. E, em 11 de janeiro de 1976, o juiz eleitoral Aroldo Antônio Clomb, da 101ª Zona Eleitoral de Coronel Vivida, reconheceu Cretã como candidato pelo MDB à Câmara Municipal de Mangueirinha.
Sua candidatura teve repercussão na grande imprensa nacional, que noticiava acontecimentos envolvendo um cacique Kaingang, da longínqua e pequena (e empobrecida) cidade Mangueirinha. A atitude ousada de Ângelo, que fez valer sua cidadania brasileira exigindo legalmente seus direitos políticos, levou o Poder Judiciário a ter que arbitrar sobre a questão da tutela indígena. A divulgação deste acontecimento nos jornais e na televisão, fez com que a opinião pública refletisse.
Foi eleito em 15 de novembro de 1976, com 170 votos o primeiro vereador indígena do Brasil, uma situação inusitada, que revelava a posição subalterna na qual foram colocados historicamente os índios.
Retomadas
Ângelo encabeçou um movimento indígena de retomadas de terra que se estendeu por diversas regiões do Sul do Brasil no final dos anos 1970 e começo dos 80. Estrategista político e linha de frente de combates que buscavam devolver terra e dignidade a milhares de guaranis e kaingans, era amado pelos seus e odiado por posseiros, políticos e grandes madeireiros.
O Paraná, na década de 1970, mantinha extensas áreas de pinhais, onde viviam Kaingangs e Guaranis. Os Guarani Nhandeva, ou Avá Guarani, sempre viveram no Oeste do estado. Gerações de índios haviam resistido a várias ocupações ao longo da história, como as missões jesuítas, os espanhóis, os bandeirantes e os tropeiros. As décadas de 1950, 60 e 70 institucionalizaram a opressão do governo federal por meio do chamado Serviço de Proteção ao Índio (SPI), substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) durante a Ditadura Militar. Além disso, surgia um novo e poderoso inimigo: os madeireiros.
Em Rio das Cobras, centenas de famílias de colonos, pobres, em busca da sobrevivência e do alimento dos filhos, haviam invadido as terras indígenas incentivados por grandes latifundiários e enganados por contratos de gaveta emitidos pela própria Funai. Seguindo o modelo desenvolvimentista da época, o governo paranaense apoiava os madeireiros. Por isso, a empresa Piassentin ocupou uma parte da reserva, subornando o chefe de Posto da Funai. Os pequenos agricultores, que pagavam algum dinheiro, também conseguiam um pedaço de terra, como ocorreu em junho de 1977, quando setenta famílias se instalaram ao redor do núcleo Guarani.
A tensão aumentava entre indígenas e posseiros. Violência, sequestros e assassinatos eram fartos combustíveis para desencadear a guerra que se aproximava. Se por um lado havia violência explicita da parte dos colonos, por outro o dinheiro e a pressão de grupos poderosos fizeram algumas famílias de Rio das Cobras aceitar a construção de uma estrada para escoar a produção do milho do grupo Marochi. A derrubada só não era maior porque os Guarani “viviam abraçados aos pinheiros”, conforme denunciava um documento da Regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que, na época, estava se organizando na região. Para facilitar o escoamento dos pinheiros, o empresário Piassentin pretendia abrir uma estrada. Além de cruzar a aldeia Guarani, ela passaria por cima da casa do cacique Valdomiro, que começava a liderar um movimento de resistência ao desmatamento. Subornado pelos madeireiros, o chefe do Posto da Funai buscava uma maneira de expulsar Valdomiro.
Prevendo um golpe, o cacique então pediu uma licença de quatro dias para terminar de colher sua roça. Articulando-se com alguns Guarani, em vez de cuidar da roça, partiu para Curitiba com a intenção de denunciar a invasão da área e a prepotência do chefe de Posto. O general Ismarth de Oliveira, presidente da Funai, estava em visita às áreas do Sul e acatou a denúncia do cacique mandando afastar o chefe do Posto. Assim, Valdomiro voltou para a aldeia vitorioso. Inconformados, os colonos e capangas dos madeireiros colocaram fogo na casa de uma família Guarani. Depois de inúmeras denúncias à Funai, os índios resolveram tomar as rédeas da situação. Sem se intimidar, os Guarani partiram para o confronto. Um conflito era inevitável. A coragem desses indígenas, vistos sempre como pacíficos, encorajou os Kaingang a entrarem na luta. “Acredito que pode ter combate. Acredito muito na minha gente e mesmo que eu não consiga vencer, como índio eu morro, derramo meu sangue, sempre como índio”, disse Ângelo Cretã em entrevista a Zelito Viana no documentário “Terra dos Índios” de 1978.
O que se seguiu nos meses seguintes em Rio das Cobras, depois do incêndio à casa de uma família guarani, foi um conflito meticuloso, com grande e eficaz pressão indígena cuja liderança era Ângelo. Armados com facões, arcos e flechas, dezenas de índios cercavam casas e arrombavam os paióis. Porcos, galinhas e outras criações sucumbiam às flechas. Os gritos dos kaingangs ecoavam na madrugada. Meses depois, em março de 1978, derrotados, cerca de 3 mil colonos abandonavam a região.
O êxito da luta dos Kaingang e Guarani liderados por Kretã em Rio das Cobras, encorajou ainda mais os índios do Sul do Brasil, servindo de referência para as novas conquistas territoriais que se seguiriam. Um movimento de retomada de terras tomou conta de todo o Sul.
Totalmente nus. Um grupo de cerca de dez kaingangs cobertos de urucum. Vermelhos como o sangue derramado pelos ancestrais. Escondidos na mata saiam aos gritos correndo em direção aos colonos. Uma espécie de grupo fantasma, invocado das lendas dos índios canibais. A tática, usada por Ângelo Kretã e o cacique de Nonoai, Nelson Xangrê, fazia parte de uma guerra psicológica usada contra os colonos que haviam invadido as terras indígenas no norte do Rio Grande do Sul.
“Como nós começamos aquilo ali e vencimos, fumos até o fim, por que não há de limpar as outras áreas? Imo lá pro Nelson ajudar ele tirar aqueles intrusos de lá. É pesada a situação lá, mas se nós ganhamos aquela de Rio das Cobras, ganhamos essa aqui (em Mangueirinha), e aquelas de Chapecó e Nonoai. Nem que morra alguém, mas sobra muita gente. Vamos larga-lhe o pau e limpar as terras indígenas”, anunciava Ângelo em entrevista a Zelito Viana no documentário “Terra dos Índios” pouco tempo antes de partir para o Rio Grande do Sul ajudar em mais uma retomada de terras.
Em abril de 1978 milhares de invasores começaram a ser retirados das terras dos índios. Cerca de 3 mil famílias de colonos ocupavam a região, em um total de 11, 800 posseiros. Escolas queimadas, colonos desarmados de surpresa. As táticas empregadas surtiam efeito e evitavam grande derramamento de sangue. Mas ele foi derramado. Acuado em casa, um agricultor saiu armado com a intenção de dar cabo ao grupo de índios que gritava à sua porta. Um rápido entrevero e um estalo. Um tiro findava a resistência de um dos últimos brancos que haviam plantado no chão de Nonoai. Na intenção de empunhar a arma, indígenas e colono entraram em luta corporal. Este último sucumbia.
O exército brasileiro, preocupado com a má repercussão dos conflitos, decidiu intervir ajudando os índios a expulsar os últimos invasores.
Em maio de 1978 os milhares de colonos haviam deixado os 15 mil hectares de terras indígenas de Nonoai. Uma horda de famílias de desabrigados vagavam pela região e penavam em barracas às margens das rodovias. Entre eles estava um tal de Pedro Barbudo que pouco tempo depois, já conhecido como Pedro Stédile, criaria o Movimento dos Sem Terra (MST).
Os Kaingang de Chapecó, no extremo oeste catarinense, constituem-se em um dos grupos que mais preservaram seus valores culturais tradicionais, mantendo vivo o idioma materno e valorizando as relações estruturais entre suas metades clânicas. E, a exemplo de seus irmãos de Mangueirinha, também sentiam na pele as mazelas impostas pela Funai. Na terra indígena de Chapecó, no final dos anos 1970, havia uma serraria serrando média de 1.300 dúzias de tábuas por mês. A sessaria da Funai serviria, em tese, para que seu lucro trouxesse benesses para os indígenas. Poucos índios, no entanto, eram empregados como mão de obra no projeto. A maioria trabalhava na roça e quando precisava de algumas tábuas para construir as casas tinha que comprar madeira na serraria que, teoricamente, era deles. Em Mangueirinha, Ângelo lutava contra uma situação parecida. A exploração madeireira exercida pela Funai por meio de uma serraria e que gerava lucros para o governo e não atendia as necessidades dos índios locais.
Além dos problemas com a Funai os 1,400 indígenas que viviam na T.I. de Chapecó viam diariamente suas terras serem invadidas por posseiros e madeireiros. O cacique José Domingos, liderança de Chapecó, convocara Kretã e Nelson Xangrê para ajudar a expulsar os invasores. Sem resistência cerca de 70 famílias de posseiros deixaram as terras em 1978.
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