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Ângelo Cretã – Sua sina, seu sangue, sua terra

Romancil Cretã sonhou com o pai. O viu rodeado por diversas pessoas no centro da aldeia. Romancil se aproximou, devagar esticou o braço e tocou seu ombro.

– Seu Ângelo, posso te dar um abraço?, perguntou.

E ficaram abraçados os dois. Fora do tempo e espaço, num enlace possível apenas num sonho.

Foi a última vez que Romancil Cretã viu Ângelo. A penúltima foi em 29 de janeiro de 1980, durante seu velório. O menino, com três anos de idade e que era puxado pela mãe em meio a um turbilhão de gritos, perdia o pai. A aldeia e o povo Kaingang perdiam um de seus maiores líderes.

Rio das Cobras – primeira batalha

Os primeiros da sua nação saíram do solo, por isso são cor de terra. Numa serra, não se sabe bem onde, no sudoeste do estado do Paraná, dizem eles, até hoje podem ser vistos os buracos pelos quais subiram. Uma parte permaneceu subterrânea e se conserva ainda lá. A ela vão se reunir as almas dos que morrem aqui em cima.

Entre 1977 e 1978 o cacique Ângelo Cretã sabia que a qualquer momento poderia se juntar aos kaingangs que permaneceram na parte de baixo. Os embates, travados durante quase três meses em Rio das Cobras no município de Nova Laranjeiras, no centro sul paranaense, prometiam sangue. Se preciso fosse, como destacou em entrevista à Rede Globo semanas antes da guerra, derramaria o seu.

A porta do paiol arrombada e dentro dele 17 índios juntam 50 sacos de milho. Já no lado de fora o facão faz um taio em cada um dos sacos e o cereal escorre sanga abaixo. O pequeno riacho, amarelo pelos grãos, leva embora parte da colheita. Depois dela, milhares de invasores também partiriam. O choque de 80 kaingangs e guaranis armados com facões, arcos e flechas, contra 300 famílias de colonos posseiros munidos de revolveres e espingardas winchester, poderia ter tido um desfecho trágico. Os anos 70, assim como os últimos 500 anos, reservavam aos indígenas brasileiros uma sina trágica. No Sul, terras legalmente compradas por guaranis e kaingangs eram expropriadas pelos governos, invadidas por colonos e devastadas por madeireiros. Era preciso, no entanto, reagir. Os órgãos oficiais encarregados pela tutela dos índios nada mais eram do que a institucionalização de um massacre iniciado quando os europeus por aqui pisaram pela primeira vez munidos de espelhos, armas e bíblias.

Magro, camisa aberta desnudando o peito, um chapéu de palha, um fino bigode e a fala mansa. Cretã significa “aquele que enxerga mais alto, que vê acima dos morros”. Ângelo Cretã tinha olhar altivo, direto, daqueles que não pestanejam. Cacique kaingang de Mangueirinha, na região de Coronel Vivida e Chopinzinho, no sudoeste do estado, foi o primeiro índio a ser eleito vereador no país. Encabeçou um movimento indígena de retomadas de terra que se estendeu por diversas regiões do Sul do Brasil no final dos anos 1970 e começo dos 80. Estrategista político e linha de frente de combates que buscavam devolver terra e dignidade a milhares de guaranis e kaingans, era amado pelos seus e odiado por posseiros, políticos e grandes madeireiros.

Ângelo Cretã semanas antes da batalha em Nonoai. Imagem: Documentário Terra dos Índios

O Paraná, na década de 1970, mantinha extensas áreas de pinhais, onde viviam Kaingangs e Guaranis. Os Guarani Nhandeva, ou Avá Guarani, sempre viveram no Oeste do estado. Gerações de índios haviam resistido a várias ocupações ao longo da história, como as missões jesuítas, os espanhóis, os bandeirantes e os tropeiros. As décadas de 1950, 60 e 70 institucionalizaram a opressão do governo federal por meio do chamado Serviço de Proteção ao Índio (SPI), substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) durante a Ditadura Militar. Além disso, surgia um novo e poderoso inimigo: os madeireiros.

Em Rio das Cobras, centenas de famílias de colonos, pobres, em busca da sobrevivência e do alimento dos filhos, haviam invadido as terras indígenas incentivados por grandes latifundiários e enganados por contratos de gaveta emitidos pela própria Funai. Seguindo o modelo desenvolvimentista da época, o governo paranaense apoiava os madeireiros. Por isso, a empresa Piassentin ocupou uma parte da reserva, subornando o chefe de Posto da Funai. Os pequenos agricultores, que pagavam algum dinheiro, também conseguiam um pedaço de terra, como ocorreu em junho de 1977, quando setenta famílias se instalaram ao redor do núcleo Guarani.

A tensão aumentava entre indígenas e posseiros. Violência, sequestros e assassinatos eram fartos combustíveis para desencadear a guerra que se aproximava. Se por um lado havia violência explicita da parte dos colonos, por outro o dinheiro e a pressão de grupos poderosos fizeram algumas famílias de Rio das Cobras aceitar a construção de uma estrada para escoar a produção do milho do grupo Marochi. A derrubada só não era maior porque os Guarani “viviam abraçados aos pinheiros”, conforme denunciava um documento da Regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que, na época, estava se organizando na região. Para facilitar o escoamento dos pinheiros, o empresário Piassentin pretendia abrir uma estrada. Além de cruzar a aldeia Guarani, ela passaria por cima da casa do cacique Valdomiro, que começava a liderar um movimento de resistência ao desmatamento. Subornado pelos madeireiros, o chefe do Posto da Funai buscava uma maneira de expulsar Valdomiro.

Prevendo um golpe, o cacique então pediu uma licença de quatro dias para terminar de colher sua roça. Articulando-se com alguns Guarani, em vez de cuidar da roça, partiu para Curitiba com a intenção de denunciar a invasão da área e a prepotência do chefe de Posto. O general Ismarth de Oliveira, presidente da Funai, estava em visita às áreas do Sul e acatou a denúncia do cacique mandando afastar o chefe do Posto. Assim, Valdomiro voltou para a aldeia vitorioso. Inconformados, os colonos e capangas dos madeireiros colocaram fogo na casa de uma família Guarani. Depois de inúmeras denúncias à Funai, os índios resolveram tomar as rédeas da situação. Sem se intimidar, os Guarani partiram para o confronto. Um conflito era inevitável. A coragem desses indígenas, vistos sempre como pacíficos, encorajou os Kaingang a entrarem na luta. “Acredito que pode ter combate. Acredito muito na minha gente e mesmo que eu não consiga vencer, como índio eu morro, derramo meu sangue, sempre como índio”, disse Ângelo Cretã em entrevista a Zelito Viana no documentário “Terra dos Índios” de 1978.

O que se seguiu nos meses seguintes em Rio das Cobras, depois do incêndio à casa de uma família guarani, foi um conflito meticuloso, com grande e eficaz pressão indígena cuja liderança era Ângelo Cretã. Armados com facões, arcos e flechas, dezenas de índios cercavam casas e arrombavam os paióis. Porcos, galinhas e outras criações sucumbiam às flechas. Os gritos dos kaingangs ecoavam na madrugada. Meses depois, em março de 1978, derrotados, cerca de 3 mil colonos abandonavam a região.

Mangueirinha

No Posto Indígena Cacique Capanema, em Mangueirinha, no dia 12 de dezembro de 1942 nascia Ângelo dos Santos Souza Cretã. Era filho de Balbina da Luz Abreu dos Santos e de Gentil José de Souza Pinto, um professor branco oriundo de Ponta Grossa que abandonou a mãe de seus filhos para retornar à sua cidade natal onde constituiu família com uma branca. É do lado materno que Ângelo descende de uma antiga família kaingang, cujas raízes estão profundamente arraigadas naquela porção de terra coberta pelas matas de pinheirais. Sua avó materna era a índia Maria Joaquina de Abreu, filha do major Antonio Joaquim Cretã e irmã do cacique José Capanema. Maria Joaquina foi esposa de Luiz Barbosa dos Santos, o pai de Balbina da Luz Abreu dos Santos.

Os indígenas chegaram à Mangueirinha em meados de 1890 para ajudar na construção de uma estrada que haveria de fazer a ligação entre os campos de Palmas à colônia militar do Chopinzinho, na mesma região. Assim, sob o comando do cacique Antonio Joaquim Cretã, a mão de obra indígena foi contratada pelo governo do Paraná, que à época ainda era província de São Paulo. Ao efetuar o pagamento pelo serviço, o governo foi surpreendido pelos índios. Aconselhados por uma matriarca, os kaingangs não aceitaram dinheiro, pois esse o tempo leva, queriam a terra, porque essa seria dos filhos, dos netos e dos bisnetos. E assim foi feito, em 1905, no início da República Brasileira e no governo paranaense de Xavier da Silva, os kaingangs receberam oficialmente, de papel passado, a posse das terras.

O verde da mata de Mangueirinha contrastava com o vermelho que cobria o chão. Em cada palmo da floresta os pinhões, que caiam das mais de 200 mil araucárias que compunham a maior reserva dessa espécie no mundo, eram fonte de alimento para os índios e os animais. Na região ainda se impunham frondosas árvores de cedro, caiarana, marfim, anjico e sassafrás.

Na infância, Cretã já sentia toda a opressão do estado e percebia qual era a sina de ser indígena. Em 1940, em plena vigência do Estado Novo de Getúlio Vargas, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que havia surgido em 1911, criou o Posto Indígena Cacique Capanema, na área onde José Capanema liderava uma comunidade Kaingang. Esta mesma política indigenista do estado brasileiro, que transformava antigos aldeamentos em postos indígenas do SPI, também trazia consigo outras implicações sociais que afetavam os indígenas. A partir deste momento histórico, lideranças tradicionais (como o cacique Capanema) perderam espaço político para os “chefes de Posto”, que passaram a impor sua autoridade sobre os “povos tutelados”. Neste período funcionários brancos dirigiam a vida das comunidades indígenas “pacificadas” e confinadas em pequenas porções de terra pelo Serviço de Proteção ao Índio.

Era uma política de extermínio que apenas se modernizara. Além do enfraquecimento das autoridades indígenas, naquele período aumentou a repressão oficial aos costumes tradicionais, com a proibição de rituais como o Kiki Koi, a perseguição aos Kuyãs (xamãs Kaingang) e até mesmo a tentativa de proibir o uso da língua Kaingang. Havia, inclusive, políticas que restringiam a liberdade de locomoção dos índios. Se por um lado o estado, que os encurralava e abafava suas crenças, por outro, posseiros e madeireiros ameaçavam, sequestravam e matavam os kaingangs e guaranis.

Todo esse cenário, aliado ao sentimento de resistência passado ao pé do fogão a lenha pelos mais velhos, enaltecendo a força e luta dos ancestrais, foi decisivo na formação da identidade de Ângelo Cretã, como destaca o professor Paulo Afonso de Souza Castro que é autor da dissertação “Ângelo Cretã e a retomada das terras indígenas no Sul do Brasil” que lhe concedeu o título de mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2011. “Todo esse cenário foi fundamental para a formação da identidade do Ângelo Cretã. Desde o Império havia uma política genocida, no que era considerada ‘guerra justa’ contra os kaingangs na região de Guarapuava. Havia muita resistência, que acabou levando os indígenas a um isolamento. Nas primeiras décadas do século XX aconteceu o fortalecimento do SPI, que tutelava os indígenas e os mantinha sob políticas totalmente discriminatórias, os obrigando a trabalhos forçados em roças coletivas, e o Cretã acompanhou boa parte desse processo”, destaca.

As tradições de seu povo nunca estiveram longe dele, mesmo no tempo em que viveu fora da Aldeia – Imagem: Acervo Museu Paranaense

Em 1949 os indígenas de Mangueirinha sofreriam mais um duro golpe. O governo de Moysés Lupion, político ligado às elites econômicas e considerado o homem mais rico do país em 1940, reduziu significativamente a terra dos índios, ignorando a legalidade da posse das mesmas. Além do Posto Indígena Cacique Capanema, houveram também reduções em terras de indígenas de Guarapuava, Ivaí, Faxinal, Rio das Cobras e Cândido de Abreu, totalizando uma subtração de mais de 150 mil hectares.

Assim, os índios no Paraná foram confinados pelo governo estadual com anuência do governo federal a apenas um terço das áreas originalmente demarcadas, segundo boletim da ANAÍ de abril de 1980 e ressaltado na dissertação do professor Paulo Afonso. Em Mangueirinha foram exatamente 8.975,76 hectares expropriados, a chamada “terra do meio” como se referem os índios, por meio do acordo entre o governo Lupion e o Ministério da Agricultura/SPI para fins de localização de imigrantes e colonização.

Após subtrair esta grande extensão do território indígena, conforme destaca a pesquisa do professor Paulo, o governo estadual repassa a área ao madeireiro Osvaldo Forte, sócio do então jovem deputado Aníbal Cury. Além do grupo Forte-Cury, outros 37 colonos adquiriram pequenas propriedades naquela região. Estranhamente, em 26 de fevereiro de 1961, o grupo Forte-Cury e todos os colonos, de modo conjunto, venderam a cobertura vegetal das terras da Gleba B, para Ercílio Slaviero & Outros. Na data de 03 de março de 1961, as terras que os colonos receberam para ocupar e cultivar, foram alienadas à empresa F. Slaviero &Filhos S/A – Indústria e Comércio de Madeiras.

Estágio entre os “brancos”

Quando jovem, Cretã passou, como revela a dissertação do professor Paulo, um período na casa de um tutor, o tio João Antonio. João era gaúcho, casado com uma índia, um sujeito da terra, filho de tropeiros, pelo duro, cuja vida foi moldada pela lida com os bichos e a lavoura. José Antonio havia sido expulso pelo SPI da terra indígena porque ajudava os kaingangs e guaranis a progredirem, questionarem e buscarem autossuficiência. Na casa do tutor ele continuou ligado à família indígena e aprendeu, vivendo com o tio, a como lidar com os assuntos de brancos, com a burocracia, com a política.

Anos depois Cretã voltou para a terra indígena. Questionador não aceitava a maneira como os índios eram tratados pelo chefe do SPI. Acabou expulso pelo Tenente Florisbaldo por se opor às práticas humilhantes que eram impostas ao seu povo. Foi então viver em outras aldeias. Conheceu sua esposa, Elvira dos Santos, com quem fugiu para consumar o casamento.

Os guaranis e os kaingangs de Mangueirinha, assim como os de Rio das Cobras, lutavam contra muitos inimigos, incluindo o próprio governo, nos anos 70 representado pela figura da Funai. Suas lutas eram para conservar sua língua, seu sumo, guardar seus costumes que estão na raiz da humanidade e que são anteriores à escravidão, aos patrões e empregados, aos ricos e pobres. Como os outros povos indígenas do Brasil eles foram, ao longo dos séculos, confinados a pequenas porções de terra, massacrados por doenças que não conheciam, caçados como animais. Tiveram desmoralizadas suas crenças, a memória de seus antepassados e tudo que lhes haviam ensinado por gerações. Ângelo Cretã, que tinha ficado fora de Mangueirinha por um bom tempo, retorna em 1960 e começa a liderar a comunidade contra a tirania do regime Funai.

Como havia vivido entre os não índios, Cretã se utilizava de códigos, normas e sistemas próprios do “mundo dos brancos”, demonstrando possuir bom entendimento sobre o sistema político e seus trâmites jurídicos. “Ele conhecia bem os limites e contradições das esferas de poder do Estado Brasileiro, em plena crise de autoridade no epílogo da ditadura militar. Porém, Cretã conhecia também as relações de autoridade características da sociedade Kaingang, como suas práticas de reciprocidade tradicionais e o domínio da língua materna”, ressalta o professor Paulo Afonso.

Em 1963 Cretã tinha vinte anos de idade e havia decidido deixar a casa de seu tutor, para voltar a viver junto com seus parentes índios. Passou então a liderar em meados da década de 1960 o movimento pela retomada da área central da Terra Indígena. Uma causa justa que uniu parentes antes afastados, e aproximava também os Kaingang dos Guarani.

A gestão de Cretã como cacique do Posto Indígena de Mangueirinha foi marcada pela luta por terra, incluindo a esfera judicial, como explica Paulo Afonso. “A demanda na esfera judicial em defesa das terras indígenas, contou com respaldo dos advogados da FUNAI, e foi iniciada no dia 20 de novembro 1974 por iniciativa de Ângelo Cretã, então cacique de Mangueirinha. Havia inclusive grupos como Carlos Gemin & Outros, que alegavam posse daquela mesma área, e também brigavam nos tribunais com os advogados da empresa Slaviero. Situação que tornava a questão sobre a legitimidade dos documentos de posse da Gleba C, um emaranhado de ações envolvendo grileiros, madeireiros, políticos, o governo estadual, a Funai e os índios. Os Kaingang e Guarani foram vencedores em primeira instância, mas em setembro de 1979, o juiz Lício Bley Vieira, da Segunda Vara da Justiça Federal em Curitiba deu ganho de causa a empresa Slaviero & Filhos”, conta.

Vereador

Ciente de que as batalhas de seu povo não poderiam ser travadas apenas pela força do arco e da flecha, como faziam seus antepassados, Ângelo Cretã decidiu entrar na política. Em 1975 aceitou o convite de um dos candidatos majoritários do MDB à prefeitura de Mangueirinha e lançaria sua candidatura como vereador. Cretã era oposição e sua escolha foi questionada por políticos da Arena, como também eram questionados seus direitos como cidadão. Os opositores alegavam que Cretã era um índio Kaingang teoricamente sob tutela do Estado, por isso não poderia concorrer a uma vaga no legislativo.  

A pressão foi grande, como um índio ousaria se meter na política dos brancos? Os muitos obstáculos criados pelos adversários fizeram com que Ângelo chegasse a pensar em desistir. Corria, na época, boato de que ele havia retirado sua candidatura. Mas era apenas um recuo estratégico. Uma atitude de defesa diante das ameaças vindas de políticos influentes, comprometidos com os interesses dos madeireiros. A dissertação do professor Paulo Afonso ressalta que o projeto político pioneiro de Cretã também enfrentou oposição de dirigentes da Funai, que o enxergavam como uma afronta ao governo e suas diretrizes indigenistas fundamentadas na tutela sobre os índios. Mesmo vivendo uma situação que negava seus direitos enquanto cidadão brasileiro, discriminado pelo fato de ser índio, o cacique Ângelo Cretã não abandonou sua candidatura. Com apoio da assessoria jurídica do Movimento Democrático Brasileiro, levou adiante sua postulação política.  E, em 11 de janeiro de 1976, o juiz eleitoral Aroldo Antônio Clomb, da 101ª Zona Eleitoral de Coronel Vivida, reconheceu Cretã como candidato pelo MDB à Câmara Municipal de Mangueirinha.

Como nada havia sido pequeno e comum na vida de Cretã, sua candidatura teve repercussão na grande imprensa nacional, que noticiava acontecimentos envolvendo um cacique Kaingang, da longínqua e pequena (e empobrecida) cidade Mangueirinha. A atitude ousada de Ângelo, que fez valer sua cidadania brasileira exigindo legalmente seus direitos políticos, levou o Poder Judiciário a ter que arbitrar sobre a questão da tutela indígena. A divulgação deste acontecimento nos jornais e na televisão, fez com que a opinião pública refletisse. Depois da eleição de Ângelo Cretã, muitos outros índios candidataram-se e ganharam espaços na cena política brasileira, como lembra Paulo Afonso. “Ele abriu precedente para todos os outros indígenas que se candidataram depois dele, principalmente o cacique Xavante Mário Juruna que em 1978 conquistou uma vaga como deputado federal no Brasil, sendo eleito pelo Rio de Janeiro”.

Cretã foi eleito em 15 de novembro de 1976, com 170 votos o primeiro vereador indígena do Brasil, uma situação inusitada, que revelava a posição subalterna na qual foram colocados historicamente os índios.

Nonoai – Segunda e maior batalha

No caminho para Nonoai – Imagem: Instituto Sócio Ambiental- Foto: Assis Hofmann

O êxito da luta dos Kaingang e Guarani liderados por Ângelo Cretã em Rio das Cobras, encorajou ainda mais os índios do Sul do Brasil, servindo de referência para as novas conquistas territoriais que se seguiriam. Um movimento de retomada de terras tomou conta de todo o Sul.

Totalmente nus. Um grupo de cerca de dez kaingangs cobertos de urucum. Vermelhos como o sangue derramado pelos ancestrais. Escondidos na mata saiam aos gritos correndo em direção aos colonos. Uma espécie de grupo fantasma, invocado das lendas dos índios canibais. A tática, usada por Ângelo Cretã e o cacique de Nonoai, Nelson Xangrê, fazia parte de uma guerra psicológica usada contra os colonos que haviam invadido as terras indígenas no norte do Rio Grande do Sul.

“Como nós começamos aquilo ali e vencimos, fumos até o fim, por quê não há de limpar as outras áreas? Imo lá pro Nelson ajudar ele tirar aqueles intrusos de lá. É pesada a situação lá, mas se nós ganhamos aquela de Rio das Cobras, ganhamos essa aqui (em Mangueirinha), e aquelas de Chapecó e Nonoai. Nem que morra alguém, mas sobra muita gente. Vamos larga-lhe o pau e limpar as terras indígenas”, anunciava Ângelo Cretã em entrevista a Zelito Viana no documentário “Terra dos Índios” pouco tempo antes de partir para o Rio Grande do Sul ajudar em mais uma retomada de terras.

Em abril de 1978 milhares de invasores começaram a ser retirados das terras dos índios. Cerca de 3 mil famílias de colonos ocupavam a região, em um total de 11, 800 posseiros. Escolas queimadas, colonos desarmados de surpresa. As táticas empregadas surtiam efeito e evitavam grande derramamento de sangue. Mas ele foi derramado. Acuado em casa, um agricultor saiu armado com a intenção de dar cabo ao grupo de índios que gritava à sua porta. Um rápido entrevero e um estalo. Um tiro findava a resistência de um dos últimos brancos que haviam plantado no chão de Nonoai. Na intenção de empunhar a arma, indígenas e colono entraram em luta corporal. Este último sucumbia.

O exército brasileiro, preocupado com a má repercussão dos conflitos, decidiu intervir ajudando os índios a expulsar os últimos invasores.

Em maio de 1978 os milhares de colonos haviam deixado os 15 mil hectares de terras indígenas de Nonoai. Uma horda de famílias de desabrigados vagavam pela região e penavam em barracas às margens das rodovias. Entre eles estava um tal de Pedro Barbudo que pouco tempo depois, já conhecido como Pedro Stédile, criaria o Movimento dos Sem Terra (MST).

Chapecó – A terceira batalha

Os Kaingang de Chapecó, no extremo oeste catarinense, constituem-se em um dos grupos que mais preservaram seus valores culturais tradicionais, mantendo vivo o idioma materno e valorizando as relações estruturais entre suas metades clânicas. E, a exemplo de seus irmãos de Mangueirinha, também sentiam na pele as mazelas impostas pela Funai. Na terra indígena de Chapecó, no final dos anos 1970, havia uma serraria serrando média de 1.300 dúzias de tábuas por mês. A sessaria da Funai serviria, em tese, para que seu lucro trouxesse benesses para os indígenas. Poucos índios, no entanto, eram empregados como mão de obra no projeto. A maioria trabalhava na roça e quando precisava de algumas tábuas para construir as casas tinha que comprar madeira na serraria que, teoricamente, era deles. Em Mangueirinha, Ângelo lutava contra uma situação parecida. A exploração madeireira exercida pela Funai por meio de uma serraria e que gerava lucros para o governo e não atendia as necessidades dos índios locais.

Além dos problemas com a Funai os 1,400 indígenas que viviam na T.I. de Chapecó viam diariamente suas terras serem invadidas por posseiros e madeireiros. O cacique José Domingos, liderança de Chapecó, convocara Cretã e Nelson Xangrê para ajudar a expulsar os invasores. Sem resistência cerca de 70 famílias de posseiros deixaram as terras em 1978.

A volta para os “de baixo”

A vingança de Romancil Cretã é não esquecer. Sua vingança é manter o nome e o legado do pai sempre vivos. Sua vingança é buscar inspiração em Ângelo quando atua como cacique de Mangueirinha nos dias de hoje. Sua vingança é levar as demandas do pai à Brasília, a São Paulo, ao Rio de Janeiro e a 18 cidades da Europa ao lado de importantes lideranças de várias etnias.

Romancil Cretã é hoje uma das mais importantes lideranças indígenas do país. Como o pai luta pelo seu povo, por sua cultura. Em 29 de janeiro lembrou, em um evento de alusão aos 40 anos da morte de Ângelo no Ministério Público do Paraná, como o cacique de Mangueirinha ainda se faz presente em toda a luta indígena travada no Brasil. “No dia de 29 janeiro de 1980 eu perdia meu pai Ângelo Cretã para maldade dos latifundiários, para posseiros grileiros de terra. Sei que a morte do meu pai não foi em vão, ele foi um líder verdadeiro que foi capaz de dar sua própria vida pelas nossas terras. Ele nos deixou um legado que é lutar pela nossa terra, pelo nosso povo. Quando vejo um governo fascista declarar que não vai demarcar um milímetro de terra e vejo até parentes indígenas o apoiando, fico muito triste. Mas logo me lembro do meu pai, e compreendo que a luta é longa”, diz.  

Romancil Cretã dá continuidade ao legado do pai.

No dia 22 de janeiro de 1980 Ângelo Cretã dirigia um fusca vermelho em direção à aldeia de Mangueirinha. Com ele viajavam três soldados da Polícia Militar. A segurança era necessária porque Cretã tinha muito inimigos. Os havia colecionado ao longo de toda sua história de subversão. Tinha expulso posseiros em Rio das Cobras, em Nonoai, em Chapecó e constantemente em Mangueirinha. Estava em disputa judicial contra a Família Slavieiro, batia de frente com a Funai, o governo estadual e o federal. Recebia muitas ameaças de morte. Algumas delas vinham pelo rádio, outras passavam de boca em boca. Não temia, sabia que toda sua luta teria um preço.

Numa curva, o fusca dirigido por Cretã bateu de frente com uma carreta. O motorista, interrogado minutos depois pelo chefe da Funai, disse que entrara na contramão porque precisou desviar de um fusca vermelho parado no meio da pista. Atrás do carro, como revelou o motorista, quatro homens aguardavam de tocaia, armados, esperando o momento certo para pôr fim à luta do cacique de Mangueirinha.

Ângelo Morreu dias depois aos 37 anos de idade. Os múltiplos ferimentos deram cabo à sua vida, mas não à sua luta. Lembrado como símbolo de resistência é, ainda hoje, 40 anos depois de sua morte, um dos personagens mais importantes da luta indígena no Brasil. “Ele era um sujeito incrível. De luta, tinha palavras bonitas, sempre sabia o que falar e o que fazer. Pra mim, o Ângelo Cretã lembra muito o Che Guevara, um revolucionário”, diz Olívio Jekupe, escritor indígena do povo Guarani e autor do livro “Xerekó arandu: a morte de kretã”.

Depois de Ângelo muito outros sucumbiram varados de bala a mando de madeireiros, políticos e empresários. Norberto Potã, vice cacique de Mangueirinha, foi assassinato pouco tempo depois. Uma pesquisa encomendada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) estima que ao menos 8.350 índios foram mortos entre 1946 e 1988. Além da violência direta do Estado, os povos indígenas sofreram com a omissão do governo.

No ano passado, o número de mortes de lideranças indígenas foi o maior em 11 anos, de acordo com um levantamento feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Foram 7 assassinatos em 2019, contra 2 em 2018. Os dados são preliminares: o balanço final só será feito em abril próximo.

Mesmo diante da violência recorrente e das políticas fascistas do atual governo federal os indígenas brasileiros continuam a ser exemplo de resistência, e sempre serão. Romancil Cretã, inspirado no legado do pai, é um dos condutores desta resistência.

Conta a tradição Kaingang que a alma de morto tem de atravessar um brejo por uma pinguela estreita e escorregadia. Se escorregar e cair, é devorada por um enorme caranguejo ou, segundo outros, por um cágado. Além da pinguela, a alma encontra o Toldo dos Defuntos, onde os seus conhecidos finados já a esperam com góyo-kuprí para festas e danças. Os debaixo, aqueles que ficaram no subterrâneo duma serra não se sabe bem onde, saldam os guerreiros vindos aqui de cima. Cretã voltou pra terra, aquela onde foi enterrado seu umbigo quando nasceu, aquela na qual derramou seu sangue, seu suor, de onde não saiu jamais.  

 

About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.