Fotos: Colaboração
“A igreja foi queimada porque não prestou mais de tanto sangue de índio derramado”.
Em 1º de abril de 1923, indígenas Kaingang invadiram a sede da Vila da Pitanga, na região central do Paraná. Não encontrando resistência por parte dos colonos, chegaram e saquearam as casas comerciais e domicílios. As famílias da região fugiram do ataque, mas permaneceram na vila algumas pessoas, entre elas Manoel Lourenço e sua esposa Geraldina Alvez. O senhor Manoel acreditava que, por sua relação com os indígenas – muitas vezes ele fazia papel de médico, receitando e dando remédios –, eles nada de mal fariam a sua família. Porém, o casal de agricultores acabou morto a tiros e golpes de facão.
Começava aí um capítulo violento da história dos indígenas no Paraná que poucas pessoas conhecem. Nos dias que sucederam o ataque, dezenas de kaingangs seriam mortos na região conhecida como Serra da Pitanga, ou simplesmente Serrinha. Hoje, o local é a cidade de Pitanga, onde fica a Terra Indígena Ivaí, no coração do Paraná.
A história do conflito envolvendo os Kaingangs é narrada no livro “Abril Violento: A revolta dos índios Kaingangues” do advogado e escritor paranaense Manoel Borba de Camargo.
Conta o livro que quatro colonos também permaneceram no povoado depois do ataque dos indígenas. Fernando Malko, Ataíde Ferreira, Gil Vaz de Camargo e Emílio Lantzmann ficaram como forma de resistência.
E em 05 de abril de 1923, armados, eles esperaram o cair da noite, quando os índios e os padres – haviam, segundo a obra, dois sacerdotes ajudando os indígenas – estavam reunidos na capela de Santana bebendo e dançando com acordes de gaita.
A noite sangrenta é narrada assim pelo livro de Manoel Borba de Camargo:
“Os índios acompanhados dos padres dançam no interior da capela. Fernando Malko observa:
– Essa gente não é padre, não. Porque padre não dança, quanto mais dentro da igreja. É o demônio que está com esta gente.
Os defensores da sede entraram na capela e, antes que os índios pudessem revidar, atiraram contra eles. Um dos padres foi morto. Depois do ataque, com as Winchesters descarregadas, os colonos recuaram para as margens do Rio Ernesto. Emílio foi, então, morto pelos índios”.
Não se sabe ao certo a quantidade exata de mortos. Mas dezenas de kaingangs perderam a vida naquela noite. Muitos corpos foram encontrados no interior da igreja. Uma chacina que marcou a região de Pitanga e repercutiu nos jornais da época.
Até o início do século XIX, a região dos campos gerais do Paraná – das cidades de Guarapuava e de Palmas – era unicamente habitada pelos índigenas Kaingang. Eles ocupavam toda a região do planalto paranaense, limitando seu território pelas vertentes orientais da Serra do Mar ao leste e pelas barrancas do Rio Paraná a oeste.
O início do povoamento não indígena na Serra de Pitanga ocorreu a partir de meados do século XIX. No ano de 1897, após a Revolução Federalista ocorrida entre 1892 e 1894, migrantes de São Paulo e de Minas Gerais vieram para a região e se estabeleceram nas margens do Rio Batista.
Mas o principal motivo que desencadeou a revolta indígenas kaingangs e o conflito entre eles e colonos foi o decreto nº 294 de 17 de Abril de 1913, que privava os indígenas de algumas terras no Paraná e os obrigava a desapropriarem essas. O governo do estado destinou as terras para fins de colonização, pois afirmava que havia um vazio demográfico nessa região, desconsiderando a existência da população indígena que habitava o local.
Os indígenas começaram então a serem expulsos de suas terras. A partir dessa situação e com os colonos reduzindo suas reservas, os kaingangs iniciaram uma onda de saques aos sítios, furtando porcos para a alimentação. Quando pegos com o produto do furto, eram chamados à presença de autoridades, sendo maltratados ou até mesmo mortos. Os caciques então, juntamente com os outros membros das aldeias decidiram iniciar uma revolta como única opção para recuperar suas terras e colocar fim às crueldades cometidas pelos colonos.
Essa revolta culminou na chacina da Serrinha, onde dezenas de indígenas foram mortos no interior de uma igreja.
Um século depois
No último mês de março de 2024, centenas de famílias Kaingangs abandonaram a Aldeia Ivaí, que fica na Terra Indígena Ivaí, no município de Manoel Ribas. Elas migraram para Pitanga, cidade vizinha, onde criaram uma nova aldeia batizada com o emblemático nome de “Serrinha”. Um retorno à região onde seus antepassados foram perseguidos e mortos.
E esse movimento migratório, que fez com que mais de 30% dos Kaingangs abandonassem a aldeia onde viveram por décadas, tem relação direta com a violência entre os indígenas da região. E ele marca um capítulo importante do conflito interno que acontece na região desde 2005. Nos últimos 20 anos, a Aldeia Ivaí, que abrigava até o mês de março quase dois mil indígenas, sofre as consequências do arrendamento das terras demarcadas para o plantio de monoculturas como a soja.
Em setembro de 2023, o Parágrafo 2 publicou a primeira de uma série de reportagens que denunciavam como milícias indígenas impõem a violência na região e como agentes políticos se beneficiam da pobreza que aflige boa parte das famílias que vivem na Terra Indígena.
A primeira reportagem pode ser lida neste link; a segunda neste e a terceira neste.
A Terra Indígena Ivaí é composta por 7.306,35 hectares. Ela é atravessada pelos rios Borboleta e Barra Preta e fica nos municípios de Manoel Ribas e Pitanga.
Em 2023, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) viviam na aldeia 1.891 kaingangs. Agora, cerca de 180 famílias migraram para Pitanga onde formaram a Aldeia Serrinha, é quase metade dos indígenas que moravam na Aldeia Ivaí.
Os kaingangs da Terra Indígena Ivaí vivem na pobreza. Sua principal renda vem de programas sociais como o Bolsa Família. Em agosto de 2022, segundo a prefeitura municipal de Manoel Ribas, 549 famílias da aldeia estavam inseridas no Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal e 396 recebiam o Auxílio Brasil. E a subsistência é garantida também pela venda de artesanato em outras cidades do estado, incluindo Curitiba. Existem ainda os que trabalham em Manoel Ribas e aqueles que têm seu punhado de terra.
Desde 2005 existe arrendamento das terras demarcadas para agricultores da região. Quem aluga as terras são os próprios indígenas. Cerca de 160 alqueires são arrendados pela Associação Comunitária Indígena Ivaí (Aciva), uma entidade criada em 2005 e que é a responsável por administrar o dinheiro que vem do plantio de soja, milho, feijão, entre outros. A Aciva surgiu por meio de um grupo de lideranças e é ela que administra boa parte das terras que são arrendadas. No total, quase 900 alqueires são cedidos para o plantio de soja, trigo, milho, entre outras monoculturas.
Conforme as fontes ouvidas pelo Parágrafo 2, a associação cobra 45 sacas de soja por alqueire arrendado. Por safra são mais de 7.000 sacas que rendem em média R$ 1 milhão. Dos indígenas que alugam a terra para plantar é cobrado R$ 1.500 por alqueire. Há, ainda, uma taxa para os índios que cultivam a própria terra. Os líderes da aldeia, incluindo o cacique e o vice, também plantam, e suas lavouras seriam as maiores.
Segundo os indígenas, os lucros da associação deveriam ser revertidos em prol da Aldeia Ivaí, mas não são. Eles seriam usados para enriquecer as lideranças do lugar e também políticos da região. “As lideranças estão ricas. Moram em casas boas, andam com bons carros, enquanto as famílias da aldeia estão passando fome, precisando vender artesanato para sobreviver”, diz um dos entrevistados.
Para as famílias da aldeia a associação oferece alguns serviços, como um ônibus para transportar indígenas que vendem artesanato em outras cidades e o empréstimo de tratores para o cultivo da terra. Mas o lucro, que chegaria à casa de R$ 1 milhão depois de uma boa colheita, seria divido entre a diretoria da Aciva. “Eles dividem o lucro. Guardam boa parte do dinheiro em espécie, usam casas fora da aldeia para isso e depositam cheques nas contas de terceiros”, revela outra fonte.
Violência
Para manter o poder, ditar as regras na Aldeia Ivaí e concentrar os lucros com o arrendamento das terras, um grupo se vale de violência e influência política e se sustenta no poder desde o início dos anos 2.000. Os mesmos nomes se perpetuam ano após ano na liderança local e reagem com brutalidade sempre que são contestados.
Hoje, o cacique da Aldeia Ivaí é Domingos Zacarias. Seu vice se chama Reinaldo Ninvaia. Os dois, porém, conforme as denúncias encaminhadas ao Parágrafo 2, pouco mandam. Quem dita as regras desde 2005, segundo as fontes ouvidas pela reportagem, é Dirceu Retanh Pereira Santiago. Ele é indígena, funcionário da prefeitura de Manoel Ribas, um dos fundadores da Aciva, já foi cacique e vereador no município.
Sobre ele pesam diversas acusações. O uso da violência, por exemplo, é uma delas. “O Dirceu é um cara muito perigoso. Ele usa de violência, tem capangas e impõe o medo quando é contrariado”, diz uma fonte. Segundo indígenas e outras fontes consultadas pela reportagem, Dirceu criou, ao longo dos anos, uma espécie de milícia indígena, que impõe sua vontade por meio da violência. Essa acusação, no entanto, não é nova.
Ele foi preso em 13 de dezembro de 2012 na Operação Forte Apache, deflagrada pela Polícia Federal (PF) para o cumprimento de nove mandados de busca e apreensão e um mandado de prisão preventiva, expedidos pela Justiça Federal em Guarapuava e pela Justiça Estadual em Manoel Ribas.
Na época, Dirceu foi acusado de arrendar terras indígenas ilegalmente e enriquecer com isso. A denúncia do Ministério Público Federal o acusava de, em conluio com dois agricultores da região, arrendar 240 alqueires da Reserva Indígena.
Depois da série de reportagens do Parágrafo 2, o Ministério Público Federal instaurou um inquérito para apurar vários crimes cometidos na Reserva.
Agora, Dirceu está preso novamente. Segundo documento ao qual o Parágrafo 2 teve acesso, ele foi preso em 22/05/2024. Foi enquadrado no Art. 311 do Código Penal: Adulterar, remarcar ou suprimir número de chassi, monobloco, motor, placa de identificação, ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, de semirreboque ou de suas com- binações, bem como de seus componentes ou equipamentos, sem autorização do órgão competente.
Dirceu foi preso na cidade de Ivaiporã depois de abordado pela Polícia Militar com um veículo cujo número de chassi estava adulterado.
Sua prisão traz uma tranquilidade momentânea para a região. Pelo menos é isso que afirmam indígenas ouvidos pela reportagem.
A migração das famílias para a Aldeia Serrinha tem como principal motivo a violência que pulsa na Aldeia Ivaí. Muitos crimes têm como principal combustível o arrendamento das terras e a concentração de poder e renda nas mãos de um grupo de lideranças que tinha Dirceu como expoente.
Eleição fracassada
Em fevereiro de 2024, depois de uma confusão envolvendo o cacique, os indígenas da Aldeia Ivaí realizaram uma eleição “relâmpago” na tentativa de amenizar o clima tenso e mudar o comando da aldeia. Porém, o mesmo grupo que se perpetua há anos no poder venceu novamente a eleição.
Domingos Zacarias foi reeleito em um pleito que gerou muita contestação. Era contra ele e um grupo de lideranças que centenas de kaingangs se rebelaram. A gota d’água foi a morte de um indígena atropelado pelo ônibus da aldeia. Conforme fontes revelaram ao Parágrafo 2, a vítima, provavelmente sob efeito de álcool, dormia sob o ônibus da aldeia quando foi atropelado na madrugada de 05 de fevereiro. Sob ordens de Domingos, segundo fontes ouvidas pela reportagem, o motorista do ônibus continuou seu trajeto sem prestar socorro.
Depois da eleição houve muitas provocações, principalmente em redes sociais. Os derrotados foram convidados, por meio de postagens no Facebook, a se retirarem da aldeia.
Os indígenas ficaram divididos e a tensão na região aumentou. Foi então que surgiu a ideia da criação de uma aldeia. E não demorou muito para que os primeiros caminhões de mudanças começassem a levar os dissidentes para o município de Pitanga.
Dificuldades e ajuda da prefeitura
Os primeiros dias na nova aldeia não foram fáceis. Sem estrutura as famílias Kaingangs ficaram sob barracos de lona. Depois de mobilização feitas pelo cacique Valmir Oliveira, pelo vice-cacique José Mendes e por outras lideranças, a prefeitura municipal de Pitanga auxiliou os novos habitantes do município com doação de alimentos e materiais de construção.
Além disso, há também dezenas de crianças que precisam ir para escola e as famílias estão longe de Unidades Básicas de Saúde. Na nova aldeia também não há luz elétrica e água encanada.
A essas dificuldades somam-se ameaças e tentativas de interferências feitas pelas lideranças da Aldeia Ivaí. Todos esses fatores motivaram uma reunião organizada pelo Ministério Público do Paraná no dia 08 de maio, no Fórum de Manoel Ribas. Participaram da reunião o promotor de Justiça da Comarca de Pitanga, o coordenador da Fundação Nacional do Índio (Funai) no Paraná e lideranças das duas aldeias.
Na reunião ficou decidido que os alunos indígenas devem continuar frequentando as escolas da Aldeia Ivaí, até serem integrados em Pitanga. Existe, conforme relata a Ata da reunião, um procedimento administrativo visando instalação de estrutura definitiva na Aldeia Serrinha “tal como fornecimento de água, luz, moradia, escola e posto de saúde”.
No encontro foi também ressaltada a necessidade de uma convivência pacífica entre as duas aldeias. Mas o que não se mencionou, conforme a ata, é que existe uma preocupação das lideranças da Aldeia Ivaí com hectares de terra para arrendamento que podem ficar sob a administração da nova aldeia.
Trecho da Reserva Indígena fica em Pitanga e perder essa área, que pode ser usada também para arrendamento ilegal, ou seja, para a usurpação dos não indígenas, parece que será o novo combustível para o conflito que penaliza as famílias Kaingangs há mais de um século.
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