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“Agonizou por 20 minutos e teve dois dedos decepados enquanto estava vivo”

Reportagem: José Pires

Fotos: Emerson Nogueira

Silenciosa uma Pálio Weekend trafegava pela rua principal da Ocupação Nova Esperança, na cidade de Campo Magro, na Região Metropolitana de Curitiba. Era 22h30 do último dia do mês de novembro. Boa parte das mais de mil famílias que vivem no local já dormia. Pelas janelas do veículo três indivíduos procuram a casa de número 229. Na residência – uma das muitas que surgiram desde a ocupação da área de 42 mil alqueires em maio de 2020 – estavam Igor Cristiano da Silva, de 24 anos e sua namorada, uma adolescente de 15.

Os integrantes da Pálio chutaram a porta. Dentro da casa Igor pega uma pistola calibre 380 e dá um tiro. Depois do disparo um grito: é a polícia! Os três homens se identificam e atiram pela janela atingindo Igor na perna. Caído ele solta à arma. Os PMs arrombam a porta, entram e o fazem segurar novamente a pistola. Parece contraditório, mas a arma na mão do cadáver poderia, na visão dos PMs, justificar o que viria a seguir.

Minutos depois mais um tiro dado pelos policiais à paisana. Desta vez no peito de Igor. No lado de fora da casa uma viatura da Rone – Batalhão de Operações Policiais Especiais, Ronda Ostensiva de Natureza Especial – dava cobertura. Os detalhes foram passados ao Parágrafo 2 por testemunhas que acompanharam o crime e ouviram, da adolescente que sobreviveu, os sórdidos detalhes da sessão de tortura imposta pela PM naquela noite.

Os disparos alertaram a comunidade e a essa altura a adolescente também tinha sido ferida de raspão no braço. Pessoas começaram a se aglomerar para ver o que acontecia.

No interior da casa, Igor agonizava. A hemorragia severa, causada pelo ferimento, o faz vomitar sangue. Enquanto vomita recebe jatos de cuspe e é “interrogado”. Os policiais, segundo as testemunhas, queriam a senha do celular da vítima. A namorada, já dominada pelos cabelos por uma policial feminina, vê tudo. Vê também os PMs urinando por todo o banheiro, no vaso, no chão, na pia. “Ela está grávida”, sussurra Igor.

A menina está escondida. Policiais a juraram de morte. Saiu da ocupação na última viatura e foi sendo ameaçada até a chegada na delegacia.

“Ta aí nosso presuntinho, se a gente soubesse tinha trazido um saco menor porque ele é bem pequeno né, parece uma criança”, zombavam os policiais, segundo contam as testemunhas. “Aqui nossa arma”, diz um deles, levantando a suspeita de que toda a operação seria para recuperar uma arma da corporação.

O sadismo, entretanto, ainda estava longe do ápice.

Na rua em frente à casa dezenas de pessoas gritavam. Várias viaturas já estavam no local. Em meio à multidão também estavam o advogado da Ocupação, Dr. Wesley e Valdecir Ferreira, liderança do bairro e integrante do Movimento Popular por Moradia (MPM), organização que fundou a vila. O primeiro foi respondido com rispidez pelos policiais que guardavam o local e teve, segundo as testemunhas, os quatros pneus de seu carro furados por PMs. O segundo foi agredido com tapas na cara. Nessa altura a população estava revoltada e balas de borracha e spray de pimenta eram usados para conter a multidão. O Batalhão de Choque já ocupava as ruas da comunidade.

No interior da casa de número 229, no entanto, as coisas eram piores ainda.

A senha do celular de Igor, exigida pela polícia, já tinha sido passada pela adolescente. Mas, não foi suficiente pra conter a sanha de sangue dos policiais. Segundo as testemunhas ouvidas pelo Parágrafo 2, dois dedos de Igor foram decepados à faca enquanto ele ainda agonizava. “Cortaram dois dedos dele enquanto ele ainda estava vivo”, diz a testemunha que, por razões óbvias, não quis se identificar.

Uma colcha jogada no quintal, dias depois da execução, mostra o quanto Igor sangrou antes de morrer. O sangue seco forma uma casca enrijecendo o tecido. Na casa a janela quebrada e em seu interior alguns móveis revirados.

Colcha com sangue simboliza a noite de terror vivida pela ocupação – Foto: Emerson Nogueira

A mãe de Igor foi avisada assim que ele foi baleado. Moradora do município de Almirante Tamandaré, também na Região Metropolitana de Curitiba, foi às pressas pra Campo Magro e quando chegou o filho ainda estava vivo. Os gritos da mãe, no entanto, foram silenciados por um “tiro de misericórdia” dado pelos policiais na boca do rapaz.

Em meio ao alarido, o Choque continuava a conter a revolta da comunidade com spray de pimenta, bombas de efeito moral e balas de borracha. Ao menos cinco pessoas foram feridas. “Um senhor chegava do trabalho naquele momento. Ele foi atingido por estilhaços de bomba, acertou o rosto dele. Um idoso foi atingido por uma bala de borracha na cabeça, outro na barriga, outro na perna…”, contam as testemunhas.

Siate teria negado atendimento

Segundo os moradores da Nova Esperança, uma viatura do Serviço Integrado de Atendimento ao Trauma em Emergência (Siate) esteve no local, mas os socorristas teriam saído de lá sem atender o baleado. “Disseram que não conseguiam entrar por causa da população, mas isso é mentira, todo mundo saiu da frente para que eles pudessem passar, mas nem entraram na casa”, afirma uma testemunha.

Ninguém dorme

Uma semana depois da execução de Igor ninguém consegue dormir na Nova Esperança. Toda noite, por volta das 22h30, uma viatura da Rone tenta entrar na comunidade. A população, porém, decidiu não deixar que entrem. Fazem barricadas com pneus na entrada do bairro, atravessam um caminhão em uma das pistas e se revezam em vigílias que varam a madrugada. “Não temos mais paz. Eles chegam apontando as armas, colocando lanterna na cara de todo mundo. Cada noite é um desespero, muita tensão, não conseguimos dormir, estamos todos tristes e cansados”, conta uma comerciante.

População tem montado barricadas e feito vigília pra evitar a entrada da PM e novos episódios de violência. Foto: Emerson Nogueira

Galeno Cristóvão Machado é uma das lideranças da comunidade. Para ele, o que a polícia fez na noite de 30 de novembro demonstra a incapacidade da Policia Militar do Paraná em usar seu serviço de inteligência. “Porque a Policia Militar consegue fazer com que a população repudie seu trabalho? Aprendemos que a polícia é garantia de segurança, mas a PM tem permitido que pessoas despreparadas, que passaram por um processo de desumanização, acreditem que têm o monopólio da morte e da vida das pessoas”, ressalta. Galeno enfatiza que a atuação do estado tem se resumido, principalmente nas comunidades carentes, à atuação repressiva das forças de segurança. “O estado só nos visita com a polícia. Porque o estado não vem aqui com a secretaria de saúde, com a secretaria de assistência social, com a Cohapar para regularizar as terras e todo mundo ter a possibilidade de pagar seus terrenos e regularizar a situação de seu imóvel?”, questiona e completa “o Gaeco investiga o crime organizado e, pra mim, o que a PM fez aqui se assemelha às execuções do crime organizado e por isso precisamos que o Gaeco investigue. Os policiais que estavam aqui perderam completamente a humanidade, como esses agentes chegaram nesse ponto, de perderem totalmente o bom senso e a sensibilidade?”.

No ano de 2020, 373 pessoas foram mortas pela polícia no estado do Paraná, de acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em números absolutos, o estado ocupa a 6ª posição no ranking da letalidade policial, atrás de Goiás, Bahia, Pará, Rio de Janeiro e São Paulo.

Em termos proporcionais, o Paraná é o 8º estado em número de mortes em decorrência de violência policial, com uma taxa de 3,2 mortes por 100 mil habitantes. Este patamar está acima da média nacional, que é de 3 mortes registradas em decorrência da violência policial a cada 100 mil habitantes. 

Na região Sul, o Paraná lidera com folga esse ranking, uma vez que a taxa em Santa Catarina é de 1,2 e no Rio Grande do Sul é de 1,3 mortes pela polícia a cada 100 mil habitantes. 

Ou seja, proporcionalmente, a letalidade policial do Paraná é mais que o dobro dos outros estados da região Sul. 

Ocupação

Hoje, cerca de 1.200 famílias vivem na Ocupação Vila Nova Esperança. A área onde o novo bairro surgiu tem 42 alqueires. Se chamava Fazenda Solidariedade, uma simetria semântica com a ocupação criada pelos novos moradores. A fazenda pertence ao governo do estado do Paraná, mas foi cedida à Fundação de Ação Social (Fas) de Curitiba e abrigava uma clínica para dependentes químicos e também servia de abrigo para pessoas em situação de rua. Em 28/08/2009 a clínica foi fechada pela Prefeitura de Curitiba sob a alegação que o alto custo não era condizente com o percentual de recuperação dos dependentes.

No dia 25 de maio de 2020 o Movimento Popular por Moradia (MPM) ocupou a área. Hoje o local é exemplo de organização e conta com creche, biblioteca, padaria, centro de informática, ambulatório médico, horta comunitária, centro de artes e um centro de reciclagem. Tudo feito por meio da organização do MPM, da participação dos moradores e da ajuda de outros movimentos sociais.

O Parágrafo 2 entrou em contato com a Assessoria de Imprensa da Policia Militar do Paraná pedindo uma nota de esclarecimento sobre as denúncias trazidas nesta reportagem. Porém, até a publicação da mesma não tinha recebido resposta.

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About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.