“Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não”
Vinícius de Moraes
Coluna Confortavelmente Enrockecido
Quando era pequeno Candeia reclamava porque suas festas de aniversário não tinham crianças. Não haviam amigos pra ajudar a cortar o bolo ou pra cantar os parabéns. Ao invés disso a casa era cheia de adultos que, em meio a cerveja e cachaça, cantavam e tocavam samba, desde o começo da tarde até a madrugada. De tanto ouvir, tornou-se um mestre precoce do gênero. Aos 17 anos, venceu a disputa de sambas-enredos na Portela para o Carnaval de 1953. Ao lado do parceiro Waldir, ainda venceria outras cinco vezes na escola.
Nasceu Antônio Candeia Filho em 17 de agosto de 1935. Filho de um tipógrafo que tocava flauta, o menino Candeia cresceu no meio de músicos, nas festas que seu pai promovia ao som do choro e do samba. Sujeito dinâmico, Candeia tocava violão e cavaquinho, jogava capoeira e frequentava terreiros de candomblé. Mas a vida do jovem forte e talentoso seria marcada por uma grande tragédia, fato que influenciaria diretamente sua obra genial.
Partideiro de qualidade, Candeia ganhava, na década de 1950, cada vez mais espaço e respeito em meio aos sambista do Rio de Janeiro. Suas letras animavam as rodas de samba. Ele era um prodígio também nos improvisos. Alguns de seus versos improvisados se tornaram tão famosos que foram gravados junto com refrãos de terceiros, como se fizessem parte da música original. Seus dotes de partideiro foram imortalizados em três álbuns denominados Partido em 5, lançados entre 1975 e 1977, com a participação de outros quatro sambistas.
O policial
Em 1961 Candeia entrou para a Polícia. Foi um policial truculento, pegava “pesado” com prostitutas, malandros e outras figuras das noites boêmias. “Candeia queria ser bom em tudo. Se era policial, tinha que prender. Mais novo, como não tinha habilidade para jogar bola, foi ser centroavante rompedor. Fazia gol de ombro, do jeito que desse”, conta o amigo e biógrafo João Baptista Vargens, autor de “Candeia – Luz da Inspiração”.
Nessa época Candeia acabou se afastando do convívio dos antigos companheiros. Várias vezes interrompeu rodas de samba por perturbação da ordem pública, estranhando os amigos e sua origem. Contam que certa vez chegou a prender o próprio irmão, Valdir. Certo dia enquadrou o ainda desconhecido Paulinho da Viola, que jogava sinuca num bar.
A tragédia
Mas sua valentia lhe custaria caro. Na manhã de 13 de dezembro de 1965, ao voltar de uma noitada, Candeia se envolveu em uma briga de trânsito no centro do Rio. Esvaziou a tiros os pneus do caminhão que se chocara com seu carro. Em resposta, o dono do caminhão atirou cinco vezes. Uma bala pegou a medula e o deixou paraplégico. A tragédia transformou sua vida. Ou o devolveu às suas origens. Na letra de seus sambas se podem notar os reflexos de seu sofrimento:
Se eu tiver que chorar
Choro cantando
Pra ninguém me ver sofrendo
E dizer que estou pagando
A partir do final dos anos 60, Candeia assumiu uma atitude praticamente inversa à do policial repressor, transformando o seu sofrimento em matéria-prima de uma reviravolta típica dos heróis trágicos.
Tornou-se um líder político, mas não partidário, o que era quase impossível naqueles anos de ditadura. Foi um porta-voz da cultura negra, dos sambistas das escolas de samba cada vez mais comerciais e de um nacionalismo que incomodava numa época em que era bom para o Brasil o que fosse bom para os EUA.
Candeia ergueu a cabeça e firmou-se como líder entre os grandes sambistas cariocas. Passou a reunir a fina flor do samba em sua casa para memoráveis pagodes de fundo de quintal. O compositor e partideiro estava em plena forma e encantava a todos com bons sambas de melodia rica. Tirá-lo de casa, no entanto, foi tarefa difícil. Em cadeira de rodas, temia que sentissem pena dele. Até que um dia os amigos conseguiram fazê-lo se reencontrar com o público. Foi numa noite, no Teatro Opinião. A casa cheia de amigos e convidados, ele entrou em sua cadeira de rodas e foi cantando um samba novo, De Qualquer Maneira, ao som de um violão:
Sentando em trono de rei
Ou aqui nesta cadeira
Eu já disse, já falei
Que eu canto de qualquer maneira
Quem é bamba não bambeia
Digo com convicção
Enquanto houver sangue nas veias
Empunharei meu violão
De qualquer maneira meu amor eu canto
De qualquer maneira, meu encanto
Eu vou cantar
Poucos conseguiram conter as lágrimas.
Em 1970 lançou seu primeiro LP, Autêntico, Samba, Original, Melodia, Portela, Brasil, Poesia, Candeia e, em 1971, um segundo disco, Seguinte…Raiz Candeia, no qual se destaca Quarto Escuro, de tom romântico e melancólico:
Não acende a luz dentro do quarto
Volto para os teus braços aceso de amor
Deixei lá fora os meus fracassos
Meus lábios contaram-me os segredos
Verdade do amor sem medo
A melancolia e o tom soturno dos sambas líricos de Candeia reaparecem naquele que é apontado como seu melhor disco, Axé, de 1978. Na faixa Pintura Sem Arte, ele chora:
Me sinto igual a uma folha caída
Sou o adeus de quem parte
Para quem a vida é pintura sem arte
https://www.youtube.com/watch?v=3RydV3bxSkg
Outra faixa desse disco, Amor Não é Brinquedo, pinta com cores fortes velhas cicatrizes:
(…) Se estás procurando distração
O romance terminou mais cedo
Peço por favor
Pra não brincar com meu segredo
Verdadeiro amor não é brinquedo (…)
Aos jovens que o procuravam para mostrar seus sambas, sempre dava conselhos: “Estude, sem estudo você nunca será nada na vida”. Respeitado no morro e no asfalto, Candeia foi um militante negro avesso ao preconceito de mão invertida. Jamais fez distinção entre negros e brancos, que ele sabia estarem igualados na luta pela vida. Aos cultores de africanismos e americanismos ele contrapunha estes versos:
Eu não sou africano
Nem norte-americano
Ao som da cuíca e pandeiro
Sou mais o samba brasileiro
Sem radicalismos, cantou as desigualdades sociais, exaltou o samba e a cultura negra, cultuou os orixás. Mesmo não chamando para si uma missão, virou um mito, líder de uma resistência que se confundia com a oposição à ditadura militar. Mas sua preocupação maior era cultural. Convencido de que a escola de samba era uma “árvore que perdeu a raiz”, deixou a Portela, que julgava descaracterizada, e com um punhado de companheiros fundou, em dezembro de 1975, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, sob a bandeira do “samba autêntico”. Candeia chegou a escrever um livro com suas críticas à forma como as escolas se apresentavam àquela altura e, de modo saudosista, indicando como saída a retomada de tradições antigas, que os sambistas por motivos os mais variados haviam abandonado. Trata-se de Escola de Samba – Árvore que Esqueceu a Raiz, Antônio Candeia Filho e Isnard Araújo, Editora Lidador, 1978. A saga da criação da Quilombo foi mostrada no documentário Eu sou o povo (2008), de Bruno Bacellar, Luiz Fernando Couto e Regina Rocha.
Candeia morreu no dia 16 de novembro de 1978 na cidade do Rio de Janeiro e com ele a escola, que desfilando fora das passarelas oficiais saiu pela última vez em 2003. Candeia foi mestre, talento precoce, policial truculento que, por meio de uma grande tragédia, transformou a vida, voltou as origens, compôs com coração, com alma, com dor. É, sem sombra de dúvidas, uma das figuras mais importantes e emblemáticas do nosso samba.