Coluna Autofagia
Thiago de Carvalho Miranda
Sigo em minha análise as ideias e reflexões do professor Daniel Cara, da Faculdade de Educação da USP, em suas diversas entrevistas e lives, principalmente para o jornal Brasil de Fato. Para pensarmos nossa realidade educacional em meio à pandemia precisamos separá-la em alguns momentos. Primeiramente, a tentativa de resolver o problema do contágio pelo novo coronavírus, através do isolamento social. No entanto, isso desembocou para um segundo momento, ao invés de procurarmos soluções que se preocupem com a aprendizagem dos estudantes, acabamos buscando as que reforçam a educação como mercadoria. Diante do quadro, surge um terceiro momento, a desigualdade, e sua superação é nosso ponto de partida para pensarmos qualquer situação, ainda mais tendo o EAD configurado como caminho e meio para processos de aprendizagem pelos estudantes. O setor do EAD é estimado como um mercado pelo movimento empresarial da Educação, no qual já estimam um montante acima de 400 bilhões de reais, segundo o próprio professor Daniel Cara.
Esse terceiro momento nos permite pensar sobre a condição do trabalho docente no Brasil. Afinal, sabemos a história da nossa categoria dentro das condições materiais e imateriais de produção do conhecimento na escola? Como essa história se relaciona com nosso presente? Que tipo de conhecimento queremos/necessitamos e para quem? Por que queremos/necessitamos desse conhecimento? E para que queremos/necessitamos desse conhecimento? E a pergunta crucial: o Ensino à distância substitui a Educação presencial?
Perante um movimento do pragmatismo neoliberal surge a sensação de que não estamos mais produzindo, que paramos a marcha do progresso e que deixamos de produzir o aprendizado dos jovens, reduzindo o processo educacional aos resultados e às demandas externas aos contextos sociais. Minha reflexão maior incide na espinha vertebral de se pensar como categoria docente e entender a conjuntura do presente. Assim, quando criticamos uma ação de um movimento empresarial da Educação em momento de urgência como o atual, não estamos criticando o trabalho docente submetido a trabalhar com o EAD. Também não é meu objetivo realizar uma crítica superficial ao EAD ou a quem faz uso do EAD como ganha-pão.
Se faz necessário partir das consequências sociais dentro de um país radicalmente desigual, ligadas à adoção de uma lógica pragmática centrada na racionalidade do neoliberalismo que resulta em produtivismo, adaptação e resiliência. Ser produtivo e se manter feliz por contribuir com uma ação tão “recheada” de boas intenções acaba sendo o mote do discurso pragmático. Posso parecer utópico, mas a ação que esperamos que nossos estudantes desenvolvam não é uma ação reflexiva que permita frearem-se e consigam ler de maneiras críticas nossa realidade, centrada na materialidade do presente e nas pressões e condicionamentos históricos dessa realidade?
Em diálogo com um colega, Fabiano Azola, grande intelectual e mestrando em antropologia da USP, desfrutei de uma explicação sobre sua pesquisa, que consiste em refletir sobre os regimes de historicidade de determinadas sociedades indígenas do território brasileiro. Ele me apresentou uma noção muito cara a essas sociedades estudadas por ele, que é o conceito de “suspender o tempo”, em que ocorrem as atividades de aprendizagem, já que essa aprendizagem só ocorre de fato quando nos apropriamos do espírito da coisa aprendida, fazendo com que essa coisa passe a ser parte de nós mesmos. Ou seja, só com a suspensão do tempo há possibilidade de pensarmos em nosso contínuo temporal e apreendermos enquanto categoria, os possíveis movimentos consequentes do EAD na realidade educacional atual. Nessa análise, portanto, me permito exercer essa “suspensão do tempo”, tão rara em nossa sociedade capitalista neoliberal, mesmo em época de pandemia e isolamento social, em que as ansiedades e temores crescem.
Pois bem, há oportunistas valendo-se da ideia de que EAD e homeschooling resolvem o problema da educação nesses momentos de pandemia – sem falar que a leitura deve ir além do problema aparente, trazido pelo isolamento social; os problemas da educação brasileira não acabam no acesso ou não às aulas. Porém, esse movimento já é constante na educação brasileira há tempos[1] e se aprofundou nos processos de disputa pela BNCC, principalmente após o golpe jurídico-parlamentar, em 2016. Organizações como Todos Pela Educação e o Movimento Pela Base Nacional Curricular, que possuem em suas redes de agentes privados instituições como Fundação Lehmann, Instituto Unibanco, Grupo Votorantim e Fundação Roberto Marinho, se apoiam cada vez mais na noção de que a Educação passe paulatinamente de um direito garantido pela Constituição, para um tipo de serviço inteiramente regido pelo livre mercado, gerando, dentre tantas infelicidades, um aligeiramento das formações e, consequentemente, uma desqualificação do trabalho docente, como Dardot e Laval (2003) afirmam no livro A Escola não é uma empresa: o neo-liberalismo em ataque ao ensino público.
Diante do movimento de transformar a educação em mercadoria, o novo léxico é garantido pelos organismos multilaterais, como Banco Mundial e OCDE e as instituições citadas acima. Com o grave quadro da pandemia, esses setores empresariais passaram a se articular com mais rapidez dentro dos próprios órgãos públicos, devido a um longo processo de apropriação desses órgãos e de retirada de poder político das entidades civis e sociais, como o Fórum Pela Educação. No processo de alinhamento curricular às exigências da BNCC, estes mesmos entes ganharam maior poder de articulação e decisões políticas, inclusive no que se refere às práticas pedagógicas e os entendimentos do que é Educação.
Recentemente, a Medida Provisória 934 editada pelo presidente Bolsonaro e respaldada pelo dispositivo do artigo 23 (parágrafo segundo) da LDB, a qual permite a flexibilização dos dias letivos, mas não as 800 horas formativas, o EAD ganhou destaque nas ações do governo e do Ministério da Educação para contornar problemas tão graves – e aprofundados por ações do próprio presidente e do ministro da Educação, com uma rede de apoio dos militares. Jair Bolsonaro assume abertamente sua simpatia ao regime militar, esses militares são adeptos de uma visão tecnicista da educação e não buscam aprofundamento na discussão sobre ela, insistindo na escola como espaço de reprodução de desigualdades – não mencionarei aqui os revisionismos históricos, mas me aterei a citar os acordos MEC-USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional)[2] durante a Ditadura Civil-Militar. Esses acordos resultaram na adoção de critérios e padrões impostos pelos EUA, notadamente o reforço do tecnicismo, de aprendizagens ativas, a desqualificação do trabalho docente e a grande valorização de “ferramentas tecnológicas” compradas dos EUA.
Ao observar essas reações, retomo a minha referência à noção de “suspensão do tempo” para aprofundar esta breve análise. Pergunto: qual é a importância do Espaço Escolar e qual é a importância do professor no que corresponde ao processo formativo de um sujeito? Ouço argumentos constantes de que se não for assim “os estudantes ficarão sem produzir nada”. Referências à suspensão do calendário letivo surgem somente das pessoas que veem na educação a complexa tarefa de produzir uma formação que tenha por objetivo concreto agudizar a compreensão das contradições do capital.
Na Educação Privada, são comuns relatos de pais e mães ameaçando não pagar mensalidade. Uma das coisas que a pandemia evidenciou, segundo o professor Daniel Cara e minhas observações, foi a de como a educação privada vende aulas, vende status social e vende network, e nesta lógica algumas famílias acreditam que compram “diferenciação social e redes de sociabilidade” para seus filhos e filhas, como as propagandas das escolas privadas constantemente afirmam. Por vezes, as escolas particulares vendem uma distinção para a reprodução de frações culturais e de classe. Mais uma vez, não é criticar a capacidade dos professores da rede privada, até porque sei como ela é, mas é aprofundar a análise estrutural em que se dá a adoção do EAD nesse momento.
Esse breve relato torna mais grave a principal reflexão aqui desenvolvida. O que as escolas, tanto públicas quanto privadas, devem ter como principal preocupação neste momento? A Educação? Se for, ela não é mercadoria e o que deve ser ofertado é a missão da Educação em nosso país, que segundo a Constituição Federal deve garantir o pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e o preparo para o mundo do trabalho. Entretanto, o momento nos dirige para uma maior complexidade de reflexão, apenas a visão constitucional tem suprido nossas ânsias como professores e professoras? Nossa Constituição não serviu para encobrir nossa realidade, por meio de um texto estético emancipatório, abarrotada de tão violentas contradições e desigualdades?
Como atender a isso entendendo a desigualdade como ponto de partida e quando os gestores da Educação têm estimulado um empresariamento cada vez maior e evidenciado pelo uso do EAD? Nessas ações, quem são os principais beneficiados? Ora, desde as companhias de telefonia móvel até as próprias plataformas de “educação” produzidas e vendidas pelas fundações empresariais envolvidas na construção e implementação da BNCC.
Contudo, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação de 2018, mesmo com crescimento do acesso à internet, há 25,3% de pessoas brasileiras que não possuem acesso. No campo, a situação se agrava: o número de pessoas sem acesso sobe para 53,5%, enquanto que nas áreas urbanas é de 20,6%[3]. Sem contar que a maioria do acesso, principalmente nas periferias e nas regiões camponesas mais distantes, se dá por meio de celulares. As regiões camponesas sofrem ainda de outra grande dificuldade, a internet via rádio e sua instabilidade de sinal ainda maior do que nas áreas urbanas.
Nós, enquanto sociedade brasileira, não temos uma cultura pedagógica sólida em relação à valorização da escola, ao reconhecimento social do professor e da professora da Educação Básica, na participação da comunidade na organização da escola e no reconhecimento do princípio de gestão democrática, que é relativizado a todo tempo, dada a própria existência de uma esfera privada na Educação. Num momento de pandemia, de reformas neoliberais e perdas de direitos, o EAD e os modismos educacionais, tendo a própria BNCC como exemplo disso, contribuem para o aprofundamento de maior relativização desse princípio.
A manutenção da data do Enem evidência duas pretensões do governo e das elites. Por um lado, o descaso com os estudantes mais pobres, por outro, mostra que o a formação e da participação social está no sentido da adaptação do indivíduo ao meio e a negação de que esse indivíduo possa compreender as possibilidades de atuação no mundo social. Cada vez mais os conceitos neoliberais da BNCC de empreendedorismo, resiliência, determinação e flexibilidade vão ganhando o léxico docente, pela “simples” ação do pragmatismo neoliberal.
Recentemente podemos observar o caso da cidade de Pitanga, no Paraná. O Núcleo Regional de Pitanga divulgou que quase 90% de seus estudantes estão excluídos pela proposta adotada por não terem acesso[4]. Outro caso que evidencia o problema, mantendo o Paraná como foco, é de que a TV contratada para EAD pelo atual governador Ratinho JR. e seu articulador no mercado da educação, e também secretário da Educação, Ricardo Feder, não possui sinal em 114 municípios[5]. Os estudantes que prestarão exames de seleção para o Ensino Superior representam outro elemento de peso em nossa análise. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP divulgou que cerca de 33,5% desses estudantes não possuem acesso à internet[6].
Aos professores e professoras, principalmente das redes privadas, sobram cobranças para produzir aulas cada vez mais atraentes e motivacionais[7]. A sobrecarga resulta num conhecimento cada vez mais técnico e proposto para fixação e realização de provas de larga escala, avaliações que apresentam uma concepção tecnicista de educação, e seu resultado poderá ser utilizado para julgar a capacidade dos docentes, assim como ser utilizada como critério para progressões, medida que retira ainda mais a condição do trabalho docente como trabalho intelectual e visa uma formação de “dadores de aula”, segundo critérios de educação impostos pela pedagogia das competências e habilidades, o que precariza as condições de trabalho e a qualidade da educação. Crianças sobrecarregadas de atividades e relatos de pais e mães insatisfeitos com o regime EAD também têm crescido com o agravamento da pandemia. Também não podemos deixar escapar que “na forma como tem sido utilizada a tecnologia educativa, além do impacto na desqualificação do próprio processo formativo dos estudantes e professores, uma série de outras preocupações – incluindo a coleta e posse de dados pessoais dos estudantes – precisa entrar” em nosso radar (Luiz Carlos de Freitas, A Reforma Empresarial da Educação – nova direita, velhas ideias, 2018).
Estamos, então, interessados no real desenvolvimento psicológico, intelectual e humano dos estudantes se estivermos olhando a tudo como um processo natural e inexorável? Qual a necessidade de se pensar a produção dos estudantes nesse momento como algo realmente efetivo em termos de aprendizagem? E nós professores e professoras? Como sairemos dessa pandemia depois de perder direitos trabalhistas e previdenciários, depois de sofrer um intenso processo de desqualificação de movimentos empresariais, religiosos e políticos conservadores e da sobrecarga de trabalho? Óbvio que ações coletivas são extremamente necessárias nesse momento, mas para agirmos precisamos tomar elementos da realidade para análise e acredito que essa análise deve conter inicialmente dois eixos: a extrema importância de suspensão do tempo para nos recolocarmos como seres humanos e a ação intelectual imperativa de que qualquer tomada de decisão no Brasil deve ter como ponto de partida a superação da desigualdade, caso contrário, até o mais bem intencionado dos discursos contribuirá para um agravamento das condições de trabalho e para o futuro da profissão docente.
Enfim, a questão já se faz presente e as dificuldades estão cada vez mais evidenciadas. Diante disso, estamos organizados o suficiente para debater sobre? Barrar o processo me parece muito difícil, mas acredito que a reflexão sobre a situação atual é um passo para produzir uma consciência coletiva e crítica de nossa categoria. Os partidos políticos e os sindicatos têm dado conta dessa organização? Por quê? O que urge no horizonte é que necessitamos de uma organização para nossa categoria sem que as críticas às estruturas postas para adoção de medidas políticas sejam entendidas como críticas ao trabalho docente. Afinal, professores e professoras, o que é conhecimento? O que o conhecimento faz conosco e o que fazemos com o conhecimento?
[1] https://www.cartacapital.com.br/educacao/conselho-nacional-de-educacao-libera-ead-no-ensino-medio/
[2] Podemos conhecer melhor esse debate através da obra História da Educação no Brasil, de Otaiza Oliveira Romanelli (1986), no tópico 5.1 – A educação brasileira após 1964: síntese de fatos, p. 193.
[3] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet
[4] https://appsindicato.org.br/exclusao-de-estudantes-atinge-indices-de-ate-90-com-ead-imposta-por-ratinho-junior/
[5] https://appsindicato.org.br/tv-contratada-por-ratinho-para-ead-nao-tem-sinal-em-114-municipios-do-parana/
[6] https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-04/um-terco-dos-candidatos-universidades-nao-tem-acesso-ead
[7] https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/04/09/interna_gerais,1137294/professores-de-mg-denunciam-sobrecarga-de-trabalho-mais-de-12h-por.shtml e https://jornaldebrasilia.com.br/nahorah/estudantes-e-professores-da-rede-publica-relatam-obstaculos-do-ensino-a-distancia-durante-a-quarentena/ e https://www.researchgate.net/publication/324507462_TELETRABALHO_DOCENTE_NA_EDUCACAO_A_DISTANCIA_SOBRECARGA_NAS_ATIVIDADES_DOS_TRABALHADORES_1 e