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A prática milenar do encantamento

Coluna Encantamentos poéticos

 

À capacidade prática de mobilização do que há de melhor nos seres humanos, convencionou-se chamar de encantamento. Encantar é, portanto, produzir ferramentas capazes de acessar os senti-pensares mais profundos, até mesmo naqueles seres cheios de certezas frias e inquestionáveis. Encantamento é a palavra utilizada historicamente para definir um sentir produtor de pulsão de vida, movedor da conexão entre o pensar, o sentir e o viver. É a palavra definidora do sentimento de conexão, que pode ser gerado entre pares, quando seus corpos e almas estão juntos, e estando juntos, geram diferentes pulsões de vida, tanto física como espiritual. Há também o convencionamento do uso desta palavra para definir o sentimento de descoberta de saberes e conhecimentos elaborados cientificamente ou sistematizados ancestralmente por meio da cultura, os quais têm a capacidade de atribuir maior sentido de compreensão da vida nos seus mais diferentes campos. De qualquer forma, encantar é a palavra utilizada para definir quando estamos por inteiro, com nossos senti-pensares florescidos de modo que tal vivência possa nos encher de força vital.

                São muitos e milenares os saberes ligados à prática do encantamento. Alguns levam em conta elementos da estética, da ética e da linguagem como forma de mover o sentimento de mobilização por meio daquilo que se parece mais bonito, verdadeiro e profundo. Sendo o ser humano um ser social, ou seja, que tem a necessidade de conexão com outros seres (e que mesmo sendo indivíduo, é também sociedade), sente-se encantado quando liga-se profundamente com seus pares. Sendo este também natureza, tendo no seu corpo, o principal veículo de sua vida, pode também acessar o sentido de encantamento através de uma conexão profunda com a natureza, uma vez que ela lhe é nutritiva. Com ela pode-se sentir parte de um todo, um todo conectado, nutrido física e espiritualmente.

              O sentimento de encantamento é um dos elementos essenciais para a capacidade criadora do ser humano. É a partir da possibilidade de conexão de conhecimentos produzidos socialmente, que pode-se criar coisas novas por meio da prática do trabalho, sendo este conceituado numa concepção materialista (base importante de produção da ciência da educação), como toda atividade intencionalmente planejada a um fim. Criar e realizar-se com o processo criativo, que leva no silêncio de seu produto final, parte do ser humano, de sua história e de seu ciclo vital de aprendizado, é também uma prática que leva ao sentimento de encantamento.

           Pode-se concluir que uma vida carregada de encantamento é, portanto, uma vida cheia de sentido, de conexão entre os seres humanos, entre estes e a natureza e sua potencialidade criadora que é própria dos seres humanos. Quando estes possuem ferramentas subjetivas e materiais para serem produtores de sua história e de sua cultura, encontram a semente do encantamento: que é o usufruto da liberdade. 

          O desencantamento é, portanto, adoecedor para todos os seres humanos.  Em outras palavras, pode-se afirmar que as condições materiais e subjetivas que impedem a conexão profunda dos seres humanos entre si, seja pela falta de tempo, energia ou por uma cultura desconectiva, tende a gerar seu adoecimento emocional e mental.

       Tais condições também ferem a capacidade de transcendência, haja vista que para transcender de uma geração para outra, precisamos estar conectados coletivamente.

encantar é a palavra utilizada para definir quando estamos por inteiro, com nossos senti-pensares florescidos de modo que tal vivência possa nos encher de força vital.

Tudo que usufruímos no presente, é fruto do que foi construído por nossos antepassados num nível social mais amplo. O que podemos construir, é também fruto do que acessamos, somado à nossa capacidade criativa, que nos confere o poder de transcendência no futuro.  Garantir o acesso e uso global do conhecimento, assim como as ferramentas para produzi-lo, é manter viva e vivificada a humanidade.

          Na mesma medida, acomodar-se com as limitações do presente, é limitar o desenvolvimento dos que vivem no presente e dos herdeiros do nosso tempo, que são o futuro da humanidade. Portanto, não assumir nossa potência criadora, é assumir o papel de não-transcendência, é morrer para a vida mesmo estando com o corpo quente.

         Quanto menos relações profundas mantemos uns com os outros, mais fragilizados e inseguros nos tornamos, diminuindo igualmente nossa capacidade coletiva de manifestar coisas no mundo. Quanto mais conectados nos tornamos coletivamente, mais aprendizados trocamos e mais enriquecidos nos tornamos.

     Da mesma forma, sendo parte da natureza, quanto menos nos entendemos enquanto tal, mais permitimos o adoecimento do nosso próprio corpo maior, que é Terra. Quanto menos nos apropriamos dos conhecimentos e saberes passados, quanto menos nos colocamos como produtores de cultura (ou seja, como passivos consumidores), mais aumentamos as chances de desencantamento e falta de sentido de nossa vida individual e coletiva. Diminuímos assim, nossa potência criativa e fruitiva, desumanizamo-nos. Por fim, se desconsideramos nossa natureza de transcender no mundo, acabamos por produzir mais e mais ferramentas limitadoras dos processos de encantamento. Diminuímos o brilho da vida, a capacidade de conexão, de amar e de sentir.

não assumir nossa potência criadora, é assumir o papel de não-transcendência, é morrer para a vida mesmo estando com o corpo quente

          Encantar-se é alimentar- se espiritualmente dos legados humanos e com eles poder construir o novo, realizar-se nos ciclos do viver. É nutrir-se onde mais pulsa a vida e pulsando o instinto vital, poder conectar-se consigo, com o mundo e com a natureza de transcender nossa existência no mundo.

Nota: o conceito de transcendência tomado como base para o texto, referencia-se no primeiro capítulo da obra Educação como prática de liberdade, produzida por Paulo Freire em 1967.

About Camila Grassi

Camila Grassi Mendes de Faria é cientista, pedagoga e educadora popular. Encontra na poética um veículo particular de fruição das experiências senti-pensadas que advém do cotidiano e dos acúmulos de seu ofício profissional.