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A política pública entre os muros da democracia representativa

Manifestação Pública do Núcleo de Estudos e Pesquisa Sobre o Ensino de Filosofia (Nesef) da Universidade Federal do Paraná sobre a política de precarização do ensino público no Brasil, especialmente no Estado do Paraná:

O NESEF-UFPR, atuante há duas décadas na defesa da educação pública, gratuita, laica, socialmente referenciada e norteada pelo ideal da emancipação social, política e cultural dos sujeitos, vem a público: (a) demarcar seu posicionamento quanto aos recentes ataques desferidos no ensino de Ciências Humanas nas escolas de Educação Básica e Superior do Brasil, especialmente do Paraná; (b) repudiar a política de precarização do ensino expressa na Lei 13.415/2017 e na versão preliminar do texto da BNCC do Ensino Médio (2018), e rechaçar a prática do denuncismo contra professores/as que fazem uso da razão pública para se manifestarem em relação à conjuntura político-educacional de nosso país.

Há, no Paraná, 10.270 trabalhadores da área da educação desempregados, pois nos últimos dois anos 3.630 docentes se aposentaram e 6.640 professores temporários (PSS) viram os seus contratos virarem pó na fogueira neoliberal de eliminação de direitos e postos de trabalho. O governo do estado do Paraná – em nome do capital financeiro, através das diversas figuras que hoje se apresentam como arautos em defesa da educação –, saqueou a previdência dos professores; massacrou-os em praça pública (massacre pelo qual, até o momento, ninguém foi responsabilizado); estimula a perseguição e a denúncia de professores por “doutrinação ideológica”; fomenta e fortalece práticas fascistas como o Programa Escola sem Partido; reduziu nominalmente o salário de professores contratados pelo PSS e a hora-atividade estabelecida por lei; fechou mais de 2.000 turmas de Ensino Médio, remanejando alunos; ameaçou, inclusive, fechar escolas; está sendo investigado, via processo instaurado, por desvio de verbas destinadas a obras nas escolas públicas.

Essa política educacional, praticada no estado do Paraná, está em perfeita sintonia com os ditames do governo federal. A Lei 13.415/2017, que trata da reforma do Ensino Médio, a BNCC e todos os documentos que o governo federal e seus parceiros vêm produzindo sobre a educação se voltam para a federalização enganosa do Ensino Médio. Como consequência desse nefasto processo, observa-se a desvalorização dos conhecimentos, das metodologias, da formação, da carreira e da profissão das professoras e dos professores. No plano econômico, o desmonte da educação brasileira busca transformar a educação pública em um balcão de negócios, liberando, desse modo, a verba destinada constitucionalmente à educação pública para empresas privadas.

O MEC repassou, como exemplo, 250 milhões de dólares para instituições financeiras e institutos ligados a grandes organizações. Esse empréstimo, recebido do Banco Mundial, será utilizado na ampliação de recursos tecnológicos em escolas públicas e na formação de novos institutos para a implementação da BNCC. Destarte, um governo que repassa mais de 1 bilhão de reais de dinheiro público para empresas privadas não tem legitimidade para cortar minguados 500 milhões de reais destinados para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

A reforma do Ensino Médio, ao propor manter apenas a matemática e a língua portuguesa como disciplinas “essenciais” na proposta da BNCC, faz uma avaliação falha e insuficiente do problema da organização curricular. Dessa forma, não só a reforma do Ensino Médio mas também a BNCC ignoram a importância das demais disciplinas que, de igual forma, trabalham com o desenvolvimento da capacidade de leitura, interpretação e cálculo (filosofia, sociologia, história, geografia, artes, educação física, física e química). Ao ser apresentado um currículo fragmentado, voltado unicamente aos interesses imediatos do mercado de trabalho, descaracteriza-se a formação humana, crítica, estética, ética e política. Desconsideram-se, assim, as contradições que subjazem aos processos mais amplos do modelo social e econômico vigente, o que fere diretamente os direitos de acesso das e dos jovens estudantes à educação pública de qualidade e socialmente referendada.

A BNCC visa estabelecer, em grandes áreas de conhecimento, o desenvolvimento de habilidades e competências, retirando, simultaneamente, as especificidades dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos, essenciais para o processo integral de formação humana. Objetiva-se, com isso, ministrar capacidades que, segundo o relatório do Banco Mundial – que pautou até agora todas as medidas de desmonte da educação, inclusive a redução salarial e o saque previdenciário dos professores –, são economicamente valorizáveis, transformando nossa juventude num objeto atrativo para o mercado de trabalho.

Tudo isso sob a justificativa de transformar a educação considerada maçante, que apenas transmite conteúdos recortados, rígidos e estritos, numa educação atrativa e lúdica para os estudantes. Por meio dessa educação “transversal” e “interdisciplinar”, que possibilita aos alunos escolher o que desejam estudar, promove-se, com as habilidades e competências da reforma do Ensino Médio e da BNCC, a destruição dos recortes epistemológicos disciplinares. Equivalentemente, as perspectivas epistemológicas e metodológicas, construídas empírica e historicamente na constituição da nossa humanidade, serão substituídas pela aglomeração de habilidades e competências em grandes áreas do conhecimento, por recortes epistemológicos abstratos, arbitrários e incoerentes. Esses recortes não projetam o desenvolvimento humano, cognitivo e crítico das e dos estudantes, e sim promovem apenas o necessário para formar uma massa amorfa e acéfala, que servirá de mão de obra barata para o mercado de trabalho.

Por tudo isso, nós do NESEF realizamos há anos inserções de debate e disputa em todo espaço possível (grupos de estudo, encontros temáticos, sessões de cineclubismo, produções acadêmicas, Olimpíadas Filosóficas, publicações da Revista do NESEF e do jornal O Sísifo…). Essas inserções são formas de defender a filosofia como disciplina, preservando o ensino das humanidades e, por conseguinte, a formação cultural (Bildung) e política; a fim de levar informações, pesquisas e análises críticas sobre a BNCC e sobre a reforma do Ensino Médio para estudantes e profissionais da educação, tanto básica quanto superior. Participamos desses espaços criticamente, tencionando os debates, influenciando as decisões e exigindo posicionamentos claros. Porque resistência não se faz com luto. Resistência se faz com luta!

Todo esse pacote de maldades do teto de gastos, da reforma do Ensino Médio, da BNCC, da reformulação dos currículos, dos programas de iniciação à docência – como a residência pedagógica e a atual proposta do PIBID – não passa de uma orgia seletiva do capital financeiro. Visto esse infeliz panorama, gostaríamos de saber das universidades públicas e, em especial, da UFPR quais serão as ações práticas de enfrentamento a reforma do Ensino Médio e a BNCC? Serão ações de luto? Ou ações de luta?

Não bastasse tudo isso, os profissionais de educação das escolas públicas brasileiras de Ensino Médio, sobretudo no estado do Paraná, vêm sofrendo com processos administrativos por parte do Estado, frutos de uma onda de denuncismo daqueles que não consideram a escola como espaço para a construção da emancipação política e cultural dos sujeitos. Para estes, a escola é vista como local de mera transmissão mecânica de conhecimentos e instrução funcional. Nessa concepção, não há espaço para o exercício crítico do pensamento e da razão pública dentro da escola.

A repressão e as atrocidades praticadas pelas forças policiais do governo paranaense contra as/os professoras/es e muitos estudantes no confronto de 29 de abril de 2015, em frente do Palácio do Governo, marcaram o início de uma onda de autoritarismo, arbitrariedade e denuncismo que passou a fazer parte do cotidiano das nossas escolas. Lamentavelmente, a figura do “capitão do mato” parece tomar conta dos estabelecimentos de ensino, de forma que os olhos e a voz do governo se multiplicaram através de colegas e de estudantes impulsionados, em especial, pelas mesmas forças que motivaram a repressão em 2015 (e o golpe em 2016). Mais de três mil profissionais da educação foram envolvidos em sindicâncias e processos administrativos no estado do Paraná, desencadeando muitas punições ainda em curso, a despeito das indicações do Conselho do Magistério.

O denuncismo não só corroí os princípios da democracia como a liberdade, legitimando o estado de exceção que se localiza no limiar do fazer político e do direito público, pois é no fato político que se encontra a sustentação necessária para a manutenção do sistema. Quando existem denúncias sem fundamentos legais, ou ainda, quando o denunciante é o próprio estudante ou colega de profissão, o denuncismo fica travestido num ato de perseguição política. O que torna ainda mais grave a atual conjuntura, porque a não aceitação do diferente e da pluralidade de pensamento consiste, de igual modo, em não aceitar o outro. Estende-se, assim, à ética, visto que o que se deseja é a anulação das contradições, instaurando a desconfiança e posteriormente o medo, na tentativa de silenciar a reflexão crítica e o pensamento, pois sem essas duas bases serão formados sujeitos conformados e passivos, colocando em risco o futuro da democracia.

Observa-se, diante disso, uma parte significativa da comunidade escolar que parece estar inclinando-se à tendência nefasta de se submeter ao poder e com ele à autoridade, que traz em seu bojo a pretensão de alimentar o ódio contra quem lhe é diferente, propagando uma discriminação social. O que subjaz o denuncismo é o estabelecimento de um tipo autoritário que dissemina um padrão comportamental apresentado de forma coerente e racional, mas que, por seu turno, é irracional e nefasto à democracia.

Faz-se necessário, considerando a atual conjuntura política brasileira – diante dos ataques que as disciplinas das humanidades, especialmente a filosofia e a sociologia, vêm sofrendo por causa de pesquisas infundadas e de discursos neoliberais e fascistas –, lutar pela sua manutenção, não só nas escolas como também nas ruas e nas praças públicas. É imprescindível mantê-las no espaço público como exercício de negatividade, para análise crítica da sociedade. Neste momento histórico, resistir significa, sobretudo, contra-atacar!

Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência” (Marx).

O Coletivo do NESEF

Curitiba, 26 de setembro de 2018.

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