Coluna: Pão e Pedras: Amenidades e Poesia
Fotos e Texto Kauê Avanzi.
“A representação não se consiste em uma imagem, em um reflexo ou em uma abstração qualquer, mas em uma medição.”
Henri Lefebvre – A presença e a Ausência.
É um dia tipicamente curitibano. Cinza, frio, e com uma garoa fina que por vezes parece cortar o rosto feito fio de navalha. À nossa frente, um mural desenhado por Poty Lazzarotto[1] compõe a faixada do Teatro Guaíra que, neste momento, possui como frequentadores apenas os seguranças e bilheteiros. Ao que parece, não há nenhuma peça sendo exibida no momento. Não explicitamente, pelo menos. As ruas ao redor estão repletas de histórias, de detalhes, sutilezas que passam desapercebidos ao observador desatento. Os Murais de Poty tem duas histórias: a que representa e a de sua construção. Poty não dominava por completo a técnica de grandes murais, deixava esta tarefa a outros artistas, artesãos e trabalhadores. Ele concebia a obra desde seu gabinete, em desenhos feitos em folha de papel e deixava que operários realizassem sua obra nos muros da cidade. Portanto, assim como na construção do Mural, a divisão do trabalho se faz presente por todo o nosso trajeto, que se inicia na praça Santos Andrade.
Trabalhadores, estudantes, moradores de rua e prostitutas compõem, junto aos diversos monumentos, árvores, cercas (visíveis e invisíveis) a pluralidade da paisagem. Apesar da chuva, os bancos das praças seguem ocupados por pessoas que conversam, riem, se entretém. São estas pessoas mal vistas pelos que trafegam ao redor. É claro, não aparentam compor os estratos mais altos da sociedade. Estão sujas, marginalizadas, sem grandes posses para exibir. Mas sorriem, e este é o grande encanto deste momento, pois apesar da condição de vida aparentemente sofrida, são realmente o que são, nesta sociedade onde o ter e o parecer ter são mais importantes que o ser de fato[2].
Secretárias apressadas percorrem – é hora de almoço! – os caminhos pré determinados pelo conjunto de pedras portuguesas que traçam um retrato em branco e preto de um dos traços culturais típicos da cultura curitibana instituída: o pinhão e a Araucária. Não há nada de novo sob o Sol. O passo apressado dos transeuntes contrasta com o tempo lento daqueles que fazem da praça a sua casa. Ali vivem, dormem, acordam, e sentem o dia passar de uma outra maneira, incompreensível para a maioria das pessoas que passam por aqui, talvez até para nós, que resolvemos ceder um pouco de nosso cotidiano atribulado para perceber o que há de trivial na paisagem, ou para notar e recontar as histórias e geografias que se amontoam pelos cantos desta cidade.
É a Praça Santos Andrade um local bastante importante na configuração dos atos políticos de rua que, geralmente, tem início nas famosas escadarias do prédio que abriga os cursos de Direito e Psicologia da Universidade federal do Paraná. Manifestações contra o aumento das tarifas de transporte coletivo, atos em favor do Impeachment da então presidenta Dilma Roussef, contra o golpe de Estado de 2016, a favor de intervenção militar, pedindo por democracia, do movimento por moradia, além da histórica luta contra a Ditadura Militar entre vários outros já fizeram desta praça o seu palco.
Seguimos pela XV de Novembro, rua tipicamente comercial da cidade. Aqui começa o calçadão e, não fosse o carro forte circulado por homens fortemente armados estacionado em frente a uma das várias agências bancárias que se espelham pela rua, a paisagem seria composta somente por pedestres. Os guarda-chuvas entrechocam-se, mas os rostos permanecem neutros; não expressam emoção. Panfleteiros tentam, de má vontade, convencer os transeuntes a consumir as mercadorias dos estabelecimentos comerciais que predominam na rua. Restaurantes, lojas de roupas, calçados, corretores de seguros e imóveis, bancos. O consumo media todas as relações por aqui. Até do senhor barbudo que toca violão. Popularmente conhecido como Plá, e tenta nos vender um de seus discos. A música é agradável, assim como a do casal de cegos que canta música sertaneja. São bem afinados, mas não temos aquilo que é fundamental para retribuir a boa música e encher-lhes o estômago: dinheiro. Estátuas vivas pregam frequentes sustos nos mais distraídos. Eles também precisam consumir, e quebram a monotonia da paisagem e do cotidiano estando parados, pintados de branco, cinza ou bronze. Quando em um movimento repentino: Bah! Mais um senhor se assusta e resmunga sua indignação, despertando o riso em alguns dos que estavam ao redor e lhe rendendo algumas moedas.
Na esquina com a Rua Marechal Floriano Peixoto um grupo de Punks faz malabares no semáforo, vendem funzines com poesias e desenhos anarquistas e têm uma conversa divertida entre si, revezando-se nas tarefas necessárias para conseguir algum quinhão. Tudo isso para manter um Squat, ocupação autogerida que mantém na Rua Mateus Leme. O visual da galera, que incomoda a muitos dos passantes, compõe-se de piercings, tatuagens, cabelos com diversas cores e cortes, rebites, jaquetas de couro e Jeans rasgados. Naquele exato momento o pessoal discutia política, a ascensão do fascismo em Curitiba enquanto riam de piadas que eles mesmos faziam. O visual – agressivo sim, pois é esta a intenção: ser uma contra-cultura que vise tencionar a cultura dominante – reflete, de certa forma, o grau de crítica deste grupo a uma cidade que se diz em ordem.
Seguindo em frente, damos de cara com um antigo bonde improvisado em biblioteca. É o Bonde da Cultura, espaço financiado pela Secretaria de Cultura para incentivar a leitura das pessoas que passam por ali todos os dias. Não é o único da cidade, e seus funcionários e estagiários transitam entre os vários núcleos de leitura e desenvolvem vários projetos, principalmente com crianças. No repertório do bonde haviam alguns dos melhores livros da literatura nacional e estrangeira: Jorge Amado; Carlos Drummond; Vargas Llosa; Raquel de Queiroz, Clarisse Lispector, Victor Hugo, Isabel Allende e tantos outros compunham as pequenas e estreitas estantes do bonde. Por vezes algumas pessoas entravam e retiravam algum livro emprestado, outras, permaneciam nos bancos do bonde e realizam a leitura por ali mesmo. Crianças, adultos e senhores são público constante, mas todos eles possuem uma característica em comum: brancos e aparentemente pertencentes à classe média. Neste caso, embora seja um espaço “aberto à todos”, acredito que um morador de rua, negro – como o são na maioria – não estaria à vontade em um espaço como este. O racismo de nossa sociedade, onde a cor da pele e classe social são, quase sempre, correspondentes está impregnado em todo o trajeto. Alegando falta de recursos, a prefeitura demitiu boa parte dos funcionários da Secretaria de Cultura, incluindo os do Bonde da leitura, contratando estagiários que poderiam, por um salário muito inferior, fazer-lhes a função e posteriormente, em 2018, fechando o Bonde[3].
Pouco antes de chegar ao nosso destino final, na Praça Osório, mais uma obra do Poty é avistada sobre um prédio. Trata-se de um operário italiano sobre um andaime, acompanhado de um prato de macarrão e uma garrafa de vinho, traços típicos da cultura italiana em Curitiba. O Poty, talvez por ser descendente de italianos e curitibano – lembrando que outro traço desta “cultura curitibana” é uma tentativa tosca de aproximar-se o máximo possível à cultura europeia – se esqueceu de representar também os escravos negros e operários nordestinos responsáveis pela construção de grande parte dos prédios e monumentos da cidade. Não podemos culpá-lo, ele apenas segue o discurso competente da ideologia dominante, que trás consigo um profundo desprezo por tudo aquilo que não é igual a si mesmo: científico, racista e segregador. Para Chauí:
(…) para que a ideologia seja eficaz é preciso que realize um movimento que lhe é peculiar, qual seja, recusar o não-saber que habita a experiência, ter a habilidade para assegurar uma posição graças à qual possa neutralizar a história, abolir as diferenças, ocultar as contradições e desarmar toda a tentativa de interrogação.[4]
Talvez por isso Curitiba se coloque publicamente como uma cidade tão europeia. A ideologia dominante para se realizar, aqui, exige que qualquer diferença, manifestação de contrariedade, insurgência ou questionamento seja apagada, suprimida. É interessante que ao trafegar por este curto trajeto observamos exatamente o contrário do que a cultura curitibana instituída e parte das obras de Poty Lazzarotto tentam expressar e difundir. Os negros, as mulheres, os diferentes, os marginalizados não aparecem na história que nos é contada, mas eles estão ali, compondo a paisagem agora e produzindo a cidade. Mas para que estes agentes continuem na marginalidade é necessário transformá-los em sujeitos sem história, sem referências, para que isso os torne mais vulneráveis e submissos. Afinal, nos dizem, são eles os intrusos, eles mancham a paisagem. Mas invertendo a história e observando mais atentamente podemos ter certeza de que são estes os sujeitos ativos na construção desta monumentalidade que não os representa e que, sem eles, sequer existiria: as trabalhadoras e trabalhadores.
Ao Chegar à praça Osório, há um mundo que habita naquela praça. E não nos referimos às diversas barracas de comida e artesanato com bandeiras de vários países, origens dos produtos ali comercializados. Nos referimos, sim, a imensa pluralidade que se realiza neste espaço onde carroças de materiais recicláveis disputam espaço nas ruas com carros. Os trabalhadores dos escritórios ao redor aproveitam a feira, que durará apenas 8 dias, para se alimentar de algo diferente enquanto descansam para a continuidade da jornada de trabalho. A fonte no centro da praça, onde uma mulher esculpida à moda grega é rodeada por peixes e sustenta uma espécie de bandeja que jorra água pelos ares. Hoje faz frio, mas em dias quentes a criançada toma a fonte e fazem deste espaço uma deliciosa brincadeira debaixo da água. Acontece que a molecada não tem acesso a clubes poliesportivos com piscina e quadras de tênis e se contentam com a brincadeira por ali mesmo. Talvez seja mesmo mais divertido assim, fora do espaço privatizado, limitado e especializado. Subverter o uso faz parte da diversão.
Os comerciantes, que administram as diversas barracas, são os mesmos que trabalham, todos os Domingos, no Largo da Ordem. Aqui é mais tranquilo, segundo eles. As pessoas não estão aqui somente para consumir, mas de passagem, no intervalo do trabalho ou como parte de um trajeto qualquer, acabam comprando uma ou outra coisa. A feira fervilha menos e os “fregueses” podem receber mais atenção, como nos relata senhor italiano que me oferece alguns suspiros para experimentar de sua barraca de doces artesanais.
Enquanto trabalhadores comem, alguns moradores de rua pedem esmolas. Enfrentam a dolorosa neutralidade que habita a maioria por aqui. É o espaço deles que está invadido e, no entanto, são eles que se tornam o incômodo daqueles que estão ocupados somente em almoçar, nascer e morrer.
Neste sentido, pensando a assim chamada cultura curitibana – estimulada pelo Estado e por empresas privadas que investem em museus, revitalizações de ruas “à moda antiga” e vendem a imagem europeia da cidade –, e se a analisamos somente por si, sem colocá-la em interação com o Espaço e com as contradições de classe, temos apenas uma visão parcial da realidade. Aceitamos a cultura por mercadoria. Visão esta responsável por invisibilizar historicamente muitos dos vários sujeitos que pudemos observar durante o trajeto percorrido. Não podemos pensar as “territorialidades” de Curitiba sem pensar que muitos dos que as compõem são migrantes expulsos de suas cidades de origem pelo avanço do agronegócio e que sem alternativas de realização da própria sobrevivência passam a compor as largas filas de desempregados e subempregados das grandes cidades, contexto que está inserido no processo de manutenção da crise do capitalismo a nível global que necessita, a todo tempo, destruir e reconstruir os usos de espaços e territórios para fazer circular um capital ocioso gerado pelas trocas, cada vez maiores, de capital fictício acumulado nas mãos de rentistas e em circulação nas bolsas de valores e mercadorias.
Para que a forma urbana se institucionalize como a única possível, se torna necessário criar uma ideologia que legitime a exclusão destes que serão os setores mais explorados da sociedade e que, no processo da diáspora[5] rural e urbana brasileira, inserem-se de maneira negativa na economia global: através da venda de artesanato, do pedir esmolas, do roubo e do tráfico de drogas e pessoas. Estes, vistos como intrusos, são tidos pela população de classe média como incômodos, mal vistos e mal vindos, gerando um profundo mal estar nas assim chamadas cultura e civilização curitibanas. Não é de se estranhar que, por exemplo, de acordo ainda com a conversa com o grupo de punks, há um número considerável na cidade de nazistas e fascistas que montam grupos para espancar negros, homossexuais, nordestinos e moradores de rua e que sentem-se confortáveis em colocar publicamente suas posições xenófobas e ainda recebem apoio por parte de certos setores da população.
Neste sentido, observando a cultura instituída por si só, sem adentrar em aspectos físicos, sociais, econômicos e políticos, estamos só reproduzindo esta quimera que devora a tudo e a todos, que continuamos confortavelmente entorpecidos pela bela canção que nos obrigam a ouvir. Nosso período histórico exige mais, e exige que tenhamos armas melhores para combater neste contexto de generalização dos conceitos sociais, envolvendo também isto a que chamamos de cultura e que é, cada vez mais apropriado para a expulsão e segregação dos pobres nos espaços públicos na cidade. A cultura por si só não se basta, é necessário mergulhar mais fundo no tecido social se queremos fazer algo além de homenagear os grandes nomes de burgueses republicanos que nomeiam as ruas e monumentos da cidade. Para se (re)conhecer uma metrópole, precisamos conhecer os que vivem em suas beiras, às margens, inclusive, do Centro.