Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia
Não venho, com este texto, falar de paz. Como falar de paz quando atingimos a marca de quase 300 mil mortes evitáveis, em especial de pretos e pobres, pela pandemia de COVID-19 no Brasil? Como falar de paz quando temos a maior taxa de desemprego registrada na história de nosso país? Como falar de paz com o preço dos alimentos de um dos maiores agroexportadores do planeta subindo exponencialmente, jogando o Brasil de volta ao mapa da fome? Como falar de paz diante do crescente número de pessoas em situação de rua em praticamente todas as grandes cidades brasileiras? Como falar de paz diante do etnocídio indígena? Como falar de paz diante de um genocídio que ocorre diante de nossos olhos? A paz está morta, a marcha fúnebre prossegue.
Me lembro bem de minha infância, em Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo. Um vizinho, que morava em frente à minha casa, tinha três filhas, com uma faixa etária próxima a minha. Lembro de ir brincar na casa delas uma tarde, e na hora de comer, tudo o que tinham era um pedaço de barriga de porco cozido na água. Todos sentaram-se em volta da panela e tomaram apenas o caldo. A carne seria fervida diversas outras vezes na água para as outras refeições, já que não haveria garantia de uma próxima. Muitos outros vizinhos viviam realidades semelhantes, cada um com sua especificidade. Eu mesmo, inúmeras vezes, tinha como café da manhã tinha apenas o leite em pó recebido da escola, que misturava com água, fazia bolinhas e comia como se fosse pão. Era bem comum que pessoas fizessem refeições umas nas casas das outras, compartilhando ingredientes, e garantindo uma refeição um pouco melhor para cada um.
Quem nunca conviveu com a fome, não sabe o peso que ela tem. Não entende a revolta de uma criança que vê sua mãe e pai trabalhando o tempo todo e não conseguir viver dignamente. Não entende a sedução do tráfico, das armas, da violência. Quem assiste essa realidade apenas pela TV, livros e internet, não sabe nada sobre ódio. Muito menos sobre paz. Porque enquanto milhões nas quebradas brasileiras não conseguem garantir o pão diário para sua família, os verdadeiros donos do poder se cercam nos muros altos de suas mansões, com segurança, motorista, cozinheiras e faxineiras. Estão confortavelmente entorpecidos em seus lares, sabendo que os gritos gerados pela miséria que causaram estão muito longe de seus ouvidos. Se esquecem que somos nós, das quebradas, que tudo produzimos. Limpamos seus banheiros, dirigimos seus carros, fazemos sua comida, limpamos suas casas, somos quase da família! Cuidamos de seus filhos não só como as babás que os criam, mas agora também como professores nas escolas e universidades que eles estudam, estamos advogando, exercendo medicina, estamos em todos os lugares, e eles não podem mais evitar a nossa presença incômoda.
Queria que a vida fosse igual na novela
Jet ski na praia, esqui na neve europeia
Sem pai de família gritando assalto
Ou sendo feito de escravo com 151 por mês de salário
Que não enche nem metade de um carrinho no mercado
Não paga a luz e água, o aluguel do barraco
Aqui pro cidadão honesto ter um teto
Só pondo o fogão na cabeça e invadindo o prédio
Saindo na mão com o PM do Choque
Sobreviver do tiro da reintegração de posse
Pergunta pro tio do terreno invadido no escuro
Facção Central – A Marcha Funebre Prossegue
Há nos versos acima, do grupo de Rap Facção Central, uma verdade inconveniente às classes dominantes brasileiras. Nós, o povo brasileiro, fomos forjados no caos, na desordem. Somos nós que temos de conviver com a desgraça desde que nascemos, superando estatísticas a cada aniversário. Eles dependem de nós, nós, cada vez menos deles. E daí, quando o morro descer e não for carnaval, nas palavras de Wilson das Neves, não sobrará pedra sobre pedra, porque se vivemos, é para decepar os reis. A PAZ ESTÁ MORTA!