– Curitiba já foi fria, mas hoje percebemos que está quente como uma cidade do Nordeste!
Maria Flor Guerreira, indígena da etnia Pataxó, limpava com o dorso da mão a tinta de urucum que escorria do rosto embalada pelo suor inevitável diante do sol vigoroso. Microfone na mão, resumia em tom profético o verão escaldante vivido pelo país no início de 2019:
– Enquanto a sociedade achar que é bonito cimentar e asfaltar tudo, as condições climáticas só vão piorar. Curitiba já foi sim um lugar frio, hoje percebemos que está quente como cidades do Nordeste. Sabem por que? Porque as árvores e as matas daqui estão dando lugar a esses cemitérios que vocês chamam de prédios.
O discurso, proferido na Praça Santos Andrade, em frente ao Prédio Histórico da Universidade Federal do Paraná (UFPR) no último dia 31/01, fez parte do ato promovido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e da campanha “Sangue Indígena – Nenhuma Gota a Mais”. A atividade compôs também o “Janeiro Vermelho” e contestou as recentes medidas do governo Jair Bolsonaro que de maneira drástica minam as políticas indigenistas e promovem, por exemplo, o enfraquecimento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e a paralisação de processos demarcatórios de Terras Indígenas. As manifestações ainda destacaram a violência sofrida por diversas etnias nos últimos meses.
O manifesto aconteceu em várias cidades do Brasil e também no exterior em países como Alemanha, Espanha, Inglaterra e Portugal. Em Curitiba, o ato foi organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Litoral Sul (Arpinsul) e pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). Quem comandou a manifestação foi o Cacique Kretã Kaingang, um dos fundadores da Arpinsul, da Apib e do Acampamento Terra Livre (ATL), que é hoje o grande fórum do Movimento Indígena brasileiro.
Txahá Xohã como é conhecida entre seu povo, ou Maria Aparecida Costa de Oliveira, ou simplesmente Maria Flor Guerreira, é mineira e educadora intercultural indígena com especialização em Gênero e Diversidade. Foi ela quem proferiu um discurso contundente no Centro de Curitiba no início do Ato do dia 31. Maria fez reverberar entre os prédios uma fala simples, livre de dados e termos técnicos, mas muito atual. “Nossa Terra Indígena em Minas já foi uma prisão indígena, mas por meio de nossa luta hoje é uma Terra homologada e demarcada. Por causa de nossa luta hoje temos escolas em nossas aldeias, podemos cursar universidades, somos sujeitos de nossa história. Viemos aqui defender essa terra não porque somos os primeiros habitantes dela, viemos defende-la porque precisamos dessa terra viva, para todos nós, indígenas e não-indígenas, independente da raça, do credo e do partido político”, disse. Em um país onde, segundo o Imazom, a Floresta Amazônica já perdeu 13 vezes o tamanho da cidade de Belo Horizonte por causa do desmatamento, o discurso da mineira, que vive na capital daquele estado, merece ouvidos. “Queremos as Terras demarcadas para mantê-las vivas, porque do contrário não teremos no futuro um copo de água para beber, e não são somente os indígenas que não terão água, são todos vocês, todos os animais, todas as árvores e plantas”, enfatizou arrancando aplausos de indígenas e não indígenas.
Ilhas de calor
Grandes centros urbanos são “ilhas de calor”. A massiva cimentação dos espaços acelera a evaporação das chuvas e influi diretamente no regime pluvial, na umidade do ar e, consequentemente, na temperatura das grandes cidades. Maria Flor sintetizou tais fenômenos de forma simples. “Quando alguém compra um terreno a primeira coisa que faz é cimentar todo o chão, cortar árvores, comprar veneno para o mato, as pessoas têm medo do mato, da sujeira que as folhas das árvores fazem. A consequência é esse calor insuportável que faz hoje”, destacou um dia após o Sistema Meteorológico do Paraná (Simepar) revelar a maior temperatura registrada pelo seu monitoramento na capital do Paraná: 36 °.
Maria pregou a união de todos os povos em defesa da mãe terra. Uma aproximação em busca da manutenção de um bem comum e muito caro a todos nós. “A gente precisa de vida e é nossa mãe terra que nos dá essa dádiva, por isso precisamos honrar ela. Mas não honramos nem a mãe útero, imagine a mãe terra. A mãe terra nos dá o que comer, o que beber, o que vestir, mas não cuidamos dela. Ao invés de preservamos estamos em guerra, um conflito onde quem se preocupar com a terra paga com sangue. Por isso eu brado: nem uma gota de sangue a mais! Não só de sangue indígena, sangue nenhum deve ser derramado. Todos nós precisamos uns dos outros, ninguém é uma ilha, ninguém vive sozinho, nós precisamos de todos vocês. A floresta é forte porque ela tem muitas árvores, pessoas juntas são como a floresta, fortes e resistentes. A nação brasileira nasceu do útero indígena e do útero das mulheres negras”, finalizou aludindo à enorme miscigenação racial no Brasil.
O Ato
A manifestação do dia 31, que começou na Praça Santos Andrade e se estendeu até o Palácio Iguaçu, no Centro Cívico, teve como objetivo principal levar às ruas o grito de revolta e o pedido de socorro dos mais de 800 mil indígenas, divididos em mais de 300 povos que ainda resistem em terras brasileiras.
Em Curitiba se reuniram centenas de pessoas, entre indígenas e não indígenas. Aldeias do litoral, do interior do estado e da Região Metropolitana foram representadas por alguns de seus integrantes e por lideranças. Várias etnias como os Guaranis, os Kaingangs e os Xetás trouxeram cantos e danças à selva de pedra curitibana.
Kretã Kaingang, uma das maiores lideranças indígenas do país, foi quem conduziu o ato. Voz ativa na luta pelas causas indígenas ele enfatizou o quanto a batalha dos povos originários é importante e prometeu, por diversas vezes, que os povos indígenas não vão recuar um passo sequer na defesa de seus direitos. “Durante cinco séculos o poder no Brasil buscou o extermínio dos povos indígenas. Mas, nós, povos indígenas, nunca vamos dobrar os joelhos para qualquer governo, independente de qual seja, nunca vocês vão nos ver de cabeça baixa para qualquer governante. A Constituição Brasileira tem 325 artigos que representam os direitos da sociedade brasileira, nós indígenas temos apenas dois, o 231 e o 238, mas morreremos para defender os dois se preciso for, daremos a vida por eles. O restante da sociedade não luta por seus direitos, mais de 300 artigos e ninguém luta por eles, já nós morremos se preciso for para defender os nossos dois. O que precisamos é dar a vida por essa Constituição. Dou a vida não porque quero ser um herói nacional, mas pelo futuro dos meus filhos, pra que seja garantido o direito de ir e vir deles. E todas as vezes que defendemos nossos filhos estamos defendendo os filhos de todos”, enfatizou.
Ricardo de Campos Leinig, da Coordenação do Litoral Sul da Funai, falou em nome da Indigenistas Associados (Ina). Seu discurso enfatizou o enfraquecimento da Fundação Nacional do Índio e das demais políticas indigenistas. “Decretos já publicados e as declarações dos novos gestores propõem alterações drásticas na política indigenista, mudando profundamente seu sentido. Pretende o governo cortar a Funai ao meio: deslocá-la para o recém-criado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e dela retirar as atribuições referentes à demarcação de terras indígenas e ao licenciamento ambiental, transferidas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Tais medidas certamente terão um efeito catastrófico para os povos indígenas, já que suas políticas ficarão submissas aos interesses do agronegócio”.
Em frente ao Palácio Iguaçu os indígenas convocaram a presença do Governador Ratinho Junior, já que muitas das políticas voltadas a eles são de responsabilidade do estado. Quem se deslocou ao ato foi uma comitiva representando o Chefe da Casa Civil, Guto Silva. Os representantes do governo, sob olhos e ouvidos de indígenas, lideranças e simpatizantes da causa como a atriz Letícia Sabatella, se comprometeu a receber um grupo de lideres no mês de fevereiro. Á tarde, mais precisamente às 14 h, os indígenas participaram de uma reunião com representantes do Ministério Público do Paraná.