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A mesma praça, o mesmo banco

Na companhia dos pombos, ela sorria, forçadamente sorria. Todos os dias, se sentava no banco da única praça que conhecia, no único bairro que conhecia, vivendo a única vida que conhecia. Ficava vendo a vida passar – dizia ela. Mal sabia que já havia passado.

Delicadamente, punha as mãos no pequeno pacote de milho que levava para seus amigos de asas. Olhava as mãos, eram macias, delicadas, uma pele fina as cobria, algumas manchas, causadas pelo tempo, davam um tom de quase morte.

Lembrou-se dos 15 anos, ali, naquela praça, fazia com as amigas planos para o futuro. Viagens, amores, carreira profissional. Risos e sorvetes derretiam naquele verão. Parecia tão fácil viver, esperava a vida que vinha. Tudo lhe parecia possível, podia ser o que quisesse, podia fazer o que quisesse, fazia. Tinha belos lábios, sempre cobertos com um batom vermelho que os realçava, distribuía beijos, sorrisos, falava sem parar. Era, agora, quieta. Vez por outra soltava um “prrrrr” para chamar os pombos. Os lábios tinham agora um arroxeado, entrecortados pela afiada navalha do tempo.

A lembrança lhe doeu o peito, um suspiro lento e angustiante lhe escureceu as vistas. Não queria relembrar o passado, tentou pensar no presente, não havia.

Aos 16 anos tornou-se mãe. Sorria, mentindo pra si mesma, ainda que sem saber, o quão feliz a maternidade a deixava. Sentada com o bebê no banco da praça, espantava os pombos. “Vão passar doença pra criança!”. Pensava no que fazia o pai de sua filha, estaria morto? Afinal, de quem era aquele carro azul com o qual ele partiu? Se ele voltasse, poderia ajudar a cuidar da menina, ela retornaria aos estudos e tudo ficaria bem.  Tirou da bolsa um pequeno estojo de maquiagem, olhou-se no espelhinho, era bonita, a gravidez não lhe havia feito tão mal, se tivesse tempo, se arrumaria, cortaria o cabelo, tingiria talvez.

Havia, agora, pouco cabelo, brancos eram todos os fios, usar aquele tão sonhado tom acaju a faria se sentir ridícula.

Quando a menina cresceu, fazia questão de estar longe da mãe. “Nunca sorri! Que mulher amarga!” – dizia. Não precisou de muito tempo para que ela saísse de casa. Se casou com o primeiro que apareceu e abandonou aquele “fim de mundo”, como ela chamava. Com 35 anos, ela agora podia voltar a viver. Um festival fora organizado na praça, um homem, já maduro, a convidou para dançar, pagou-lhe quentões, ela adorava quentão, tomou até sentir esquentar as maçãs do rosto. Sorria, com seu batom rosa cintilante, sorria. Nos olhos, o lápis preto, passado grosseiramente na parte inferior, começava a borrar, ela não se importava, estava feliz. O Homem, um caminhoneiro que morava na cidade vizinha, prometeu voltar na semana seguinte, combinaram de se encontrar logo após o almoço, ali, no banco da praça.

Ela acordou cedo naquela terça-feira. Tomou um banho demorado. Abriu o pequeno vidro de perfume, era uma linda embalagem, transparente e com algumas protuberâncias quadriculadas. Era meio-dia e meia. Ela se encaminhou para a praça, sentou-se no banco e olhava a estrada que dava acesso a cidade. Aguardava, ansiosamente o caminhão da empresa de produtos de soja. Às três da tarde, comprou um saquinho de pipoca, não sentia fome, mas queria passar o tempo e controlar a ansiedade. Aos poucos os pombos foram se chegando. Divertidamente, ela jogava a pipoca e eles voavam ao seu redor, ela não mais se preocupava com a possibilidade de que eles lhe passassem doença.

Passaram-se os anos, e todos os dias ela fazia o mesmo ritual: o banho, o perfume, passava no armazém e comprava milho. Os pombos já não a divertiam mais, mas eram sua única companhia, o milho era tudo o que ela podia dar.

Sentada em meio aos pombos, ela já não tinha nenhuma esperança, até que, ao longe na estrada, em meio a poeira um caminhão surge. Não era a primeira vez que ela via esta cena mas, desta vez era diferente. Era ele! Só podia ser ele. Em meio às rugas um sorriso se abriu. Paralisada, com a mão dentro do pacote de milho, não conseguia se mover. Os pombos voavam nervosos, a fim de receber seu alimento diário, que não vinha. Aos poucos, sua cabeça pendeu para o lado, um gemido de dor, o pacote de milho se esparramando. Os pombos bicavam-lhe a mão se fartavam de milho, ela já não precisava mais esperar.

 

About Jaque Marcelino

é formada em Letras pela PUC-PR, professora de Literatura, Língua Portuguesa e Espanhol. Dizem por aí que não é mulher para casar.