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A indiferença usa vermelho

Quando iniciou seu monólogo, Nathaniel encontrava-se em frente a um espelho velho, em um banheiro sujo, pequeno e mal iluminado, às voltas com suas alucinações e seu estado narcótico. Havia passado a mão no espelho, a fim de remover o musgo que estivera ali acumulado por dias, e assim, pôde contemplar a própria face: pálida.

Os vislumbres da mulher mais linda que já tinha visto estavam à tona. Lembrava-se bem e podia sentir o conjunto estranho de sensações tomando-lhe o espírito. Naquela circunstância, ele não podia discernir quais sensações sentia e também não podia, de certa forma, antever o desfecho trágico que aquele estado moribundo, de profundo abatimento, jamais sentido nem mesmo nos seus piores sonhos, haveria de reservar a ele.

– Que musa, meu amigo! – começou ele, suspirando. – Que musa! A sensualidade resplandecida naquele corpo. Uma mulher de vestido vermelho, sim. Capaz de habitar o centro do universo. Naquele vermelho a paixão… o amor. Que esplêndida! meu amigo. Que esplêndida!

Assim, subitamente ele mudava o tom de voz, como se estivesse interpretando outro interlocutor:

– Ah, Nathaniel, estás ficando louco? Paixão e amor são coisas distintas. E o vermelho que vira só pode ser sangue…

Assim, voltando-se à própria figura, responde:

– Sim, meu amigo, o vermelho que simboliza o perigo. A morte rubra. Intenso, perigoso, traiçoeiro… como o vinho.

– Embriagado percebe-se que já estás. – Responde rindo.

Nesse momento, é interrompido por um acesso de tosse. Uma tosse seca e tremendamente incômoda. Ao se reestabelecer, continua:

– Aquilo é a cor, homem! – exclama, em voz mais agressiva. – É aquilo que vejo, sinto, posso sentir… Um espectro profuso da minha mente obcecada…

Nathaniel encara mais fixamente o espelho, sem deixar baixar o rosto, e se questiona: – Responda-me, meu amigo: diga-me, se minhas perguntas são enfadonhas, diga-me… A cor é força. É vida. Não vês? – Grita ele – É vida!

Neste momento, ele faz uma breve pausa e  continua, movimentando os braços de um modo psicótico:

– Ora, Nathaniel, não sejas tolo. Esqueça essa mulher. Pare com esse heroísmo. A verdade é, pois, que neste jardim de ilusão, no qual plantas sonhos e esperança – a verdade é, meu caro -, que o vermelho é, sim, uma rosa perfumada cercada por espinhos.

Agora Nathaniel ri de modo obcecado e sua voz soa ainda mais tempestiva.

– Que mal há, meu amigo, em sangrar nos espinhos para deixar que o vermelho do meu sangue se misture com o da rosa perfumada?

– A morte vem para todos, Nathaniel. Basta estar vivo. É como o canto da cigarra. Os tolos cantam ainda mais alto.

– Que seja! Se isto for necessário para conquistar a dama de vermelho. Cantarei mais alto que o mais tolo dos tolos. Sentirei o beijo frio dos lábios da morte.

Nathaniel suspira e fica com a cabeça abaixada. Ele treme bastante, de modo efusivo, os punhos cerrados. E, assim, num ato repentino, mais motivado por seu estado débil do que qualquer outra coisa, Nathaniel esbofeteia o espelho, quebrando-o em vários pedaços. Em seguida, segura desesperadamente um pedaço de vidro e diz: “Mother? I want to kill you!” Ele está com os olhos e boca contorcidos numa loucura atroz. Quando, finalmente, chega ao ápice de sua loucura.

– Não! – grita para si uma voz interna. – Não faça isso!

E ele o faz!

Nataniel corta os próprios pulsos e vê o sangue verter, escorrendo lentamente pela pia do banheiro. Um vermelho intenso, igualmente sedutor como o vestido da mulher pela qual se apaixonara. O sangue que escorre como um pequeno rio da morte, misturando-se com o limo e os musgos arraigados por toda parte.

Contemplou aquilo com uma calma descomunal, girando a torneira e admirando o vermelho do seu sangue misturar-se à água, ficando cada vez mais claro… Um rio vermelho que começava a ficar cada vez maior, numa onda de duas cores. Um rio sob a luz esverdeada do recinto. Ele só, sozinho… apenas. Não demora muito para que, aos poucos, sua visão começasse a se desvanecer… Não mais estaria sozinho: estavam lhe chamando para o outro lado. Sim, estavam. Vozes frias, como o sopro da morte. Até que, enfim, ele aceita… e sucumbe.

Seu corpo despende: os olhos fechados e as mãos caídas sobre a pia. Mansamente, a água continua a percorrer lhe o corpo. Um estranho desenho de poesia e horror. Sua figura trágica assemelhava-se a de um servo que, ajoelhado, implora pelo grande amor da amante. O sangue segue um novo córrego… e se esvai. O corpo, protagonista da cena, finalmente havia obedecido ao chamado… A vida deixada de existir naquele conjunto orgânico. As matérias equivalentemente frias, servindo de convite para que o vento gelado invadisse o recinto…

E longe desse cenário trágico – de solidão e desespero – a dama de vermelho, a qual ele tanto se referia e admirava com genuíno entusiasmo, nunca haveria, pois, de saber qual teria sido, afinal, o pobre destino de Nathaniel.

About Jesse Gomes

Jesse Gomes é escritor, autor de "A Trajetória dos Condenados". Trabalhou em revistas e passou brevemente pelo jornal Gazeta do Povo. Vê nas palavras uma forma de transformação social.