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A guerra nossa de cada dia: Palestina e a violência cotidiana.

Texto de Kauê Avanzi e Kauan Fonseca Lunardon Por isso, prescrevemos aos israelitas que quem matar uma pessoa, sem que esta tenha cometido homicídio ou semeado a corrupção na terra, será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade. Al Maidah 5/32 - Alcorão Desde os ataques perpetrados pelo Hamas e a intensificação do massacre israelense em Gaza, a repercussão internacional do conflito apresentou-nos o início de uma cisão que traz à tona um novo equilíbrio das forças ensaiado nos últimos anos, e que tem como principal fator a crescente decadência da democracia capitalista-burguesa liderada pelos Estados Unidos e pela…

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Texto de Kauê Avanzi e Kauan Fonseca Lunardon

Por isso, prescrevemos aos israelitas que quem matar uma pessoa, sem que esta tenha cometido homicídio ou semeado a corrupção na terra, será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade.

Al Maidah 5/32 – Alcorão

Desde os ataques perpetrados pelo Hamas e a intensificação do massacre israelense em Gaza, a repercussão internacional do conflito apresentou-nos o início de uma cisão que traz à tona um novo equilíbrio das forças ensaiado nos últimos anos, e que tem como principal fator a crescente decadência da democracia capitalista-burguesa liderada pelos Estados Unidos e pela Europa Ocidental. Na Inglaterra, Alemanha e França – países onde a extrema direita ganha força com o discurso anti-imigrantes, em especial de origem islãmica – proibiu-se o uso de bandeiras palestinas. Nos Estados Unidos – que usa Israel como base militar para suas ocupações militares no Iraque, Síria, Iêmen, e Líbia – ao mesmo tempo que o governo envia armas e dinheiro para Israel, um protesto de judeus-americanos ocupa o capitólio pelo cessar-fogo. Nas grandes cidades do Oriente Médio e do sudeste asiático, protestos massivos tomam as ruas.

A imediaticidade das imagens transmitem uma guerra em tempo-real, e opiniões divergentes circulam na velocidade da luz infladas pela necessidade de aprovação na sociabilidade mediada por aplicativos do vale do silício. As famigeradas bolhas fragmentam o discurso público e tornam impossível o debate produtivo acerca do que ocorre. Num mundo marcado pelo aumento inabalável da violência, pela crise ambiental que se desdobra em eventos extremos cada vez mais frequentes, e pelo agravamento insidioso da desigualdade, somos condenados a um conformismo melancólico? Parece ser o derradeiro destino de uma sociedade ocidental que agoniza sob o peso de suas próprias contradições.

Não é novidade que para entender o conflito entre Israel e Palestina é necessário uma perspectiva histórica e geopolítica. A motivação religiosa, embora patente, não passa de uma cortina de fumaça que esconde os meandros complexos desse conflito. O proclamado “direito divino do povo judeu” oculta habilmente o controle de Israel sobre os recursos hídricos da região, o mercado imobiliário dos assentamentos judeus ilegais na Palestina (que aumentaram nos últimos anos) e a exploração da mão de obra palestina nas cidades israelenses. E que dizer dos interesses vorazes do complexo industrial militar dos Estados Unidos? Qualquer semelhança com as operações militares nas favelas das bandas de cá não é mera coincidência.

O colonialismo contemporâneo, tal como praticado pelo estado de Israel, sustentado pelos cordões financeiros dos EUA, pode até não ser uma novidade, mas sua continuidade destaca de maneira incontestável a violência intrínseca a esse processo. Esta violência, crua e inescrupulosa, agora é exibida perante nossos olhos, transmitida em tempo real através das câmeras da Al Jazeera. Não há como justificar o suposto “direito de defesa” de Israel sem sucumbir ao cinismo mais flagrante ou à hipocrisia mais vil. Entretanto, chocantemente, foi preciso o bombardeio covarde de um hospital mantido pela Igreja Batista para que o mundo ocidental acordasse para o massacre em curso.

Violência e colonização

Aimé Césaire, em seu Discurso Sobre o Colonialismo, reflete sobre como a barbárie da Europa Ocidental é incrivelmente elevada, superada apenas pela norte-americana. Entendemos que dentro do capitalismo o desenvolvimento das forças produtivas sempre tiveram centralidade, seja na organização das colônias, ou na relação dos países centrais do capitalismo, com os arrendamentos e cercamentos das terras; é a organização em torno do lucro e da exploração capitalista do trabalho e não somente o desenvolvimento das técnicas que caracterizam o nosso modo de produção.

A escravidão negra e indígena nas colônias foi um momento necessário para a constituição do monopólio da terra aos capitalistas europeus, criando artificialmente a escassez desta até que a propriedade privada estivesse consolidada nestes territórios. Tal momento produz uma massa racializada e empobrecida passível de ser proletarizada em condições muito inferiores às de um trabalhador europeu. “A idéia do negro bárbaro é uma invenção européia”, repetindo Aimé Césaire.

O martinicano C.R.L James, em seu livro Os Jacobinos Negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos (2011), equivale os levantes de escravos (adicionaria aqui as revoltas indígenas) na América Latina e Caribe às revoltas e greves de trabalhadores europeus da época de Marx, uma vez que o trabalho realizado nas colônias era fundamental para a industrialização e acumulação de capital na Europa, mostrando inclusive que os negros escravizados eram numericamente superiores aos trabalhadores fabris europeus no mesmo período. James chega a afirmar que a maior parte da economia francesa estava intimamente dependente do trabalho realizado em suas colônias. Portanto, a exploração dos territórios colonizados se daria de maneira mais violenta, prolongada e profunda que a exploração capitalista nas fábricas da Europa.

A verdade é que a história do mundo é uma história de violência. E não por que essa seja uma condição natural do ser humano como a teoria contratualista de Hobbes fez nos crer, mas porque ela foi nos imposta como tal. Se o colonialismo ensaiou-se antes na dominação britânica da Irlanda, como defende Aimé Césaire, não é coincidência que essa pequena ilha do norte da europa tenha originado as bases de uma racionalidade que definiria, através da violência, o destino do mundo. Ainda que um possa argumentar que outras sociedades precedentes também eram colonizadoras, o modelo inventado pelos britânicos de colonização encontrou forma e força a partir do estabelecimento da mentalidade liberal e da defesa da propriedade privada. A revolução industrial, por sua vez, não ocorre devido ao brilhantismo de determinados homens, mas a partir do espólio de todo um contingente populacional. Dentre os ingredientes dessa história está a violência da desposseção das terras comunais, a violência sobre as mulheres, a exploração do trabalho infantil, os campos de concentração, a tortura, entre outras atrocidades que fariam os swet shops comandados por lojas de roupas da Europa no sudeste asiático parecerem lugares salubres de trabalho.

Com a intensificação dos fluxos econômicos globais e a imperiosa necessidade de expandir mercados, o modelo inglês de colonialismo encontrou terreno fértil. Se o liberalismo clássico, de Smith e Ricardo, advogava que a riqueza seria melhor distribuída entre as nações ao passo que cada país especializa-se em determinadas atividades, foi o colonialismo que impôs que nossa vocação seria produzir commodities para alimentar a fome dos países do norte – enquanto produzimos a nossa. Além disso, é impossível não notar aqui um princípio ontológico essencial: a busca dos interesses individuais levaria ao bem estar social coletivo. Estes fundamentos liberais, embora revolucionários em relação ao absolutismo, nada mais fizeram que reificar um tipo específico de individualidade colocada como superior em relação aquelas “descobertas” nos encontros coloniais das grandes navegações.

De Gaza para todas as quebradas

É possível traçar uma história parecida também na península ibérica, retomando a violência operada no processo de reconquista, e transferida anos mais tarde para as Américas. Não à toa que após a extermínio e expulsão dos mouros, uma das primeiras ações perpetradas pelos espanhóis foi a de queimar os livros, reconstruir os momentos e tentar apagar uma história que durante quase mil anos deu forma àquelas paisagens. A colonialidade, essa manifestação multifacetada de violência econômica, cultural e epistemológica, persiste como uma sombra espectral, teimando em assombrar o presente. Acreditar que essas violências foram erradicadas com o fim formal do colonialismo seria uma ingenuidade deplorável; elas subsistem, metamorfoseando-se em novas formas de opressão. Ainda assim, não podemos ignorar o peso que a densidade temporal realiza na atualização desses processos.

Foucault soube habilmente identificar no poder disciplinar a atualização da violência ocorrida na modernidade europeia, ela mesma irmã-siamesa da colonialidade. Mas nas franjas do mundo colonizado essa substituição nunca ocorreu. Por isso é enganoso pensar que o horror da escravidão representa um arcaismo superado, pois não foi superado, muito menos é algo arcaico, pelo contrário, é a base da nossa modernidade. E assim Mbembe nos ajuda mais que Foucault, pois na periferia do mundo a necropolítica, o fazer morrer puro e simples, é mais elucidativa que a biopolítica foucaultiana. A Europa é indefensável, já diria Césaire.

Isso nos leva de volta à Gaza, onde a necropolítica israelense opera com mais força. Tem-se que o horror da guerra não é nada mais que expressão da colonialidade, ali colonialismo de fato. Propomos então um exercício de imaginação: conceber como seria o Oriente Médio (ou a África e a América Latina) caso os colonizadores tivessem resolvido não se intrometer na trajetória de outros povos. Se desse exercício surgirem imagens de regiões atrasadas, dependentes de uma agricultura de subsistência, ou “paradas no tempo”, é porque a narrativa do desenvolvimento nos engoliu. Mike Davis, em seu livro Holocaustos Coloniais mostra como as epidemias de fome e a miséria no chamado terceiro mundo foram consequência da desestruturação de sociedades inteiras para a realização dos interesses econômicos dos colonizadores europeus. Por outro lado, se ousamos imaginar outras possibilidades de ser e estar no mundo que não a crise econômica e racial que vivemos, desafiamos a ideologia que nos enfiam goela a baixo de que o desenvolvimento capitalista é o único caminho para a superação da pobreza e que a democracia burguesa é a melhor maneira de nos organizarmos politicamente.

Se nos fronts da guerra o horror colonial se faz evidente, por aqui, a distância histórica com o colonialismo não nos permitiu eliminar a violência colonial, mas silenciá-la, torná-la reclusa a alguns lugares e direcionada a algumas pessoas. Isso significa dizer que para existir segurança no asfalto, é necessário perpetrar a violência no morro e convencer tanto quem mora no asfalto quanto quem mora no morro que a violência é natural e se origina nesses lugares periféricos, quando na verdade é exatamente o oposto. Um raciocínio perverso que faz com que os alvos da violência, no caso moradores das periferias brasileiras, sejam vistos como seus perpetuadores. Não me surpreenderia se algum parlamentar da extrema direita propusesse instalar ao redor das favelas o mesmo modelo de checkpoint existente entre Israel e a Cisjordãnia. Em verdade, povos indígenas e favelados no Brasil todo já vivem em diferentes sistemas de confinamento territorial há muito tempo.

No momento em que escrevemos, está ocorrendo a “operação Maré”, com participação das polícias militar, civil e da força nacional, atingindo mais de 120.000 pessoas que vivem no complexo da Maré, na zona norte Rio de Janeiro. Somente esse ano, já foram realizadas 21 operações policiais na Maré, 6 delas no âmbito dessa operação específica e ocorridas entre os dias 09 e 18 de outubro. Nenhuma delas respeitou a “ADPF das favelas”, decisão do STF que exige que os agentes de segurança que atuam nesse tipo de operação devem utilizar câmeras e que ambulâncias devem estar de prontidão para socorro às possíveis vítimas. Além de deixar milhares de crianças sem aula e pessoas sem acesso à atendimentos de saúde, são inúmeros os relatos de moradores que tiveram suas casas invadidas sem mandato ou justificativa, agressões físicas e psicológicas, e outras violências policiais. Tudo isso com o aval do ministro da justiça Flávio Dino, até então uma das personalidades mais evidentes da esquerda brasileira. No mesmo período, no dia 12/10/2023, sem dar um tiro sequer, a Polícia Federal fez uma das maiores apreensões de fuzis da história, em um condomínio de luxo na Barra da Tijuca, bem longe da Maré.

A colonialidade empurra para suas franjas a violência. Nos confins do mundo, a violência colonial se manifesta com uma brutalidade inaudita. Nas margens, ela não apenas se revela, mas se torna insuportável. Gaza, nesse contexto, serve como um exemplo aterrador do colonialismo contemporâneo em sua forma mais crua e desumana, pois os mecanimos usados para moer gente por lá são os mesmos que operam nas nossas favelas. Apoiar a causa palestina não é apenas um ato de solidariedade; é um reconhecimento da brutalidade e da violência que nos cercam diariamente, tanto em Gaza quanto nas periferias de nossas cidades. A violência não é um espetáculo ocasional; é um drama cotidiano que se desenrola em nossas vidas. Acreditar que a violência é exceção, e não a regra, só garante com que ela continue se perpetuando, vitimando povos racializados em todo o mundo.

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.

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