A pandemia de Coronavírus que assolou o mundo inteiro, abalando profundamente nossa saúde e trabalho, provocou a aceleração do processo de entrada das tecnologias de comunicação nas escolas públicas e particulares. Ferramentas como Google Meet, Zoom, e plataformas digitais de produção de vídeos e conteúdos digitais tornaram o papel de estudantes ainda mais passivo, já que na maioria dos casos estes ficavam restritos ao ambiente doméstico, ouvindo ou assistindo aulas expositivas de professores que se desdobravam para realizar seu trabalho com alguma qualidade em um ambiente extremamente adverso.
O retorno das atividades presenciais nas escolas não cessou, mas trouxe formas contraditórias de usos da tecnologia da educação. A privatização do ensino médio-técnico na rede estadual paranaense, concedida ao grupo UNICESUMAR é uma face didática deste processo neoliberalizante. Estudantes dos cursos técnicos supervisionados por um tutor assistem, em uma televisão, aulas dadas por um professor que, remotamente, atende diversas turmas em um município ou região. Chama-se isso de “aula presencial com suporte de tecnologia”, um modo de disfarçar a precarização de um professor dando aulas simultaneamente para vinte turmas, via tela. Tal forma de educar causou diversas manifestações de estudantes em todo o estado, exigindo que professores os atendam presencialmente (APP Sindicato em 14/03/2022).
O Estado do Paraná tem se tornado referência negativa no país inteiro quando se refere à aplicação e formatação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) na rede estadual, como pudemos observar nos slides preparados para a disciplina de Empreendedorismo que diferenciava as pessoas em dois perfis: as com mentalidade de rico e as com mentalidade de pobre, colocando a culpa da pobreza sobre os pobres, e não como fruto do sistema social em que vivemos e também como responsabilidade do Estado, conforme na imagem abaixo:
O caso tomou proporções nacionais, sendo repercurtido nas mídias de todo o país. Mais recentemente, em matéria sobre o tema do uso de sistemas de Inteligência artificial nas escolas, mais uma vez a educação paranaense aparece como referência negativa no jornal Folha de São Paulo, quedestaca o seguinte sobre a plataforma educativa Redação Paraná:
O Redação Paraná é alvo de uma série de críticas dos educadores que o utilizam. “A plataforma surgiu com muitos problemas, inclusive para formatar os textos. Além disso, só consegue evitar o plágio entre as redações dos próprios alunos, não detecta cópias de conteúdos externos”, afirmou Cláudia Gruber, 54, que é mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná, professora da rede pública paranaense há 30 anos e atualmente dá aulas de redação para o 3º ano do ensino médio.
(Folha de São Paulo, 7/3/2023, por Laura Mattos)
Esta é apenas uma das faces implementação da Base Nacional Curricular Comum. A outra está no processo de formação da subjetividade dos estudantes, já que há uma forte ênfase em perspectivas liberalizantes de educação. Em uma perspectiva baseada na pedagogia das Competências e Habilidades, proposta pelo economista Jacques Delors, o projeto educativo paranaense busca a formação de uma força de trabalho mais coesa e flexível, onde os trabalhadores formados por esta concepção estariam aptos a se adaptar com facilidade a diferentes profissões e atividades profissionais, com ênfase no desenvolvimento de competências como as de “eficiência social” e a “competência gerencial”(FARIA, 2014).
Assim, há a imposição de currículo e de concepções pedagógicas sem diálogo com os educadores, conforme podemos ver com a imposição do uso das plataformas LRCO, Inglês Paraná, Redação Paraná, Khan Academy, Quizziz, Alura, além da plataforma RCO+Aulas que já vem com aulas prontas que devem ser “executadas” pelos professores da rede estadual paranaense e que são bastante problemáticas quando falamos em questões pedagógicas, mas também de conteúdo das disciplinas, apresentando diversos erros conceituais. Força-se com que educadores sigam os pressupostos pedagógicos e o conteúdo disponível nestas plataformas, havendo pressão sobre professores e escolas que não atingem resultados quantitativos no uso destas plataformas educativas.
Pressão por uso de plataformas educativas digitais pode ser ilegal.
Classificando as escolas em um ranking de uso das plataformas que premia as mais assíduas e cobra resultados das mais ausentes (Imagem 2), incorre-se uma grave afronta à autonomia docente, ferindo o o artigo 206 da constituição federal, que propõe no paragrafo III que o ensino deve basear-se no “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; (…).” e à Lei de Diretrizes e Bases, onde se coloca no Artigo 3°, nos parágrafos II e III que o ensino será ministrado de acordo com os princípios da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; e do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; além da ADPF 548/2020 despachada pelo Supremo Tribunal Federal através da ministra Carmen Lúcia em favor da liberdade de cátedra (que inclui a liberdade de concepções pedagógicas e de ensino), direitos estes que foram conquistados após muita luta e sangue no processo de redemocratização pós ditadura civil-militar no Brasil.
Os grupos privados que fazem das plataformas de ensino à distância seu negócio já vinham rondando as redes públicas como fatia de mercado já a alguns anos, vide que as escolas públicas abrigam a maior parte dos estudantes do país e, ainda, tendem a receber os filhos da classe média que viu sua condição econômica piorar no que sobra do Brasil após a crise institucional, política, econômica, social e sanitária que vivemos nos anos de governo Bolsonaro. Temos a situação perfeita para que estes grupos assumam, com vistas ao seu lucro individual (objetivo de toda empresa privada), ao menos em parte os sistemas educativos, agravando as desigualdades sócio-econômicas entre os estudantes das escolas públicas e aqueles que possuem dinheiro para pagar por um ensino particular.
Além disso, forma-se uma subjetividade flexível e programada e as experiências norte-americanas e sul-coreanas desta perspectivanos mostra um foco exagerado em uma formação técnica e matemática mas com um nível baixíssimo de compreensão social crítica (LEFF, 2007), conformando sociedades que desenvolvem seus valores sempre no nível de indivíduos e famílias, nunca de comunidades. Com esta concepção pedagógica a noção de empatia morre por abandono.
Além dos investimentos reduzidos por parte do Estado em educação pública, deixando que o espirito empreendedor seja o responsável por oferecer educação, no olhar de “mercado” do que seria “qualidade de ensino”. Para a efetivação de tais preceitos pedagógicos, a Secretaria de Estado da Educação (SEED-PR), através do Ofício Circular n° 006/2023 assinada por Ane Carolina Chimanski, Cristiane de Jesus Jakymiu e Anderfábio Oliveira dos Santos, e que impõe o número mínimo de usos de cada uma das plataformas colocando como uma necessidade de “inclusão de novas ferramentas que visam a contribuir para a melhoria da proeficiência de nossos estudantes (p. 1), colocando-se como normativa a ser seguida com números semanais mínimos de acessos às plataformas conforme tabela abaixo, que circula nos grupos de professores e diretores de escola como um “resumo” desta resolução:
Assim, professores vêem eliminadas de seu cotidiano a liberdade de escolha do conteúdo e dos métodos a serem trabalhados por este, empobrecendo e desvalorizando o seu ato pedagógico, já que inclusive as avaliações agora precisam estar amarradas a estas plataformas com, por exemplo, 30% das notas de todas as disciplinas vinculadas a realização de um jogo de perguntas e respostas na plataforma Quizziz. Tais determinações, mesmo que encaminhadas por normativas advindas dos gabinetes da SEED-PR, podem ser ilegais, uma vez que estas normativas não podem se sobrepor ou ignorar a legislação vigente citada acima, em especial a Constituição Federal, no que se refere à liberdade de cátedra e de concepções pedagógicas. É evidente que existe uma política de uma formação massiva de profissionais com baixa qualificação, atendendo as demandas do mercado de trabalho, criando assim um exército de profissionais efêmeros formados à partir da escola, que vão para a sociedade incapazes de fazerem sua próprias leituras de mundo, e destituídos de uma ideologia própria, e que tendem a acatar a ideologia dos meios de comunicação dominantes. O ensino remoto como resposta para o isolamento necessário diante da pandemia e seu prolongamento após o retorno as atividades presenciais somente reforçam e aprofundam tal processo.
Breve análise do uso de plataformas digitais na rede estadual paranaense
Cada vez mais os professores da rede estadual do Paraná estão sendo pressionados a utilizar os slides já prontos na plataforma RCO+Aulas, que está vinculado ao sistema digital de registro de frequência e conteúdo nas escolas paranaenses. O uso dos slides está vinculado a duas ferramentas de controle, sendo uma delas o uso da plataforma Quizziz, de uso obrigatório para os professores, que não podem sequer editar as questões para suas realidades, e à aplicação da Prova Paraná, feita trimestralmente, e que cria um ranking – disponível na plataforma PowerBI, da Microsoft – entre escolas e professores do resultado obtido pelos estudantes, premiando as escolas que obtém melhores resultados e punindo aquelas que não se saem bem com corte de verbas e fechamento de turmas. Em geral, as escolas periféricas são as que mais sofrem com estas imposições, já que não possuem computadores e aparelhos celulares suficientes para aplicar tais medidas em seus estudantes.
Há, na política pedagógica imposta pela dupla Ratinho Jr., e Renato Feder, uma inversão lógica entre criatura e criador neste ponto. É como se Deus, tendo supostamente criado a humanidade, passasse a ser dominado e oprimido por esta. Esta forma de consciência, que chamamos de fetiche que se constitui na forma romântica de tornar absolutas relações sociais historicamente constituídas, perdendo o lastro histórico que as constituiu, naturalizando-as, como se existissem desde sempre, não havendo qualquer alternativa ao mundo existente. Deste modo a automação e a inteligência artificial, criadas por nós humanos, se tornam absolutas, inquestionáveis, regulam vidas e relações, formas de ver e de pensar o processo educativo, que é humano por excelência. A técnica tornou-se nossa rainha soberana, que reina sobre a vida e sobre a morte. O evangelho de que estas técnicas são neutras e eficientes precisa ser desmontado, ou isso acarretará em profundas mudanças na forma como nós humanos nos relacionamos uns com os outros e com a natureza. Este texto, no entanto, não faz uma demonização da tecnologia em ambientes educativos. Trata-se de propor um novo uso, que dialogue com as experiências e vivências de educadores e educandos. Propomos um uso popular e emancipador da tecnologia na educação, e que não se baseie na visão restrita de que tecnologia na educação se restrinja ao uso de telas e aplicativos de computadores e celulares substituindo professores reais.
É possível que uma estudante que não tenha a habilidade com a escrita devidamente desenvolvida não vá tão bem em uma avaliação como a Prova Paraná. Pode até ser que tenha compreendido os conceitos trabalhados, mas a dificuldade em compreender e expressar-se pela linguagem escrita fez com que atribuíssemos a este indivíduo uma nota ou conceito baixo, seguida de uma bronca de professores, das mães e pais, enfim, de todos envolvidos em seu processo individual de aprendizagem. É aí que está o grande perigo. Esta estudante, frustrada diante de sua suposta incapacidade de aprender, gerada por um trabalho não adequado a suas dificuldades, acaba por sentir-se desestimulada com a aprendizagem, desacreditando de si mesmo e gerando um ciclo crescente do que chamamos “indisciplina”, que é na verdade a rebeldia de educandes com os padrões impostos pelos mais velhos (OLIVEIRA, 2004) podendo levar a um aumento da evasão escolar. Em uma mesma turma, com o passar dos anos, é notável na minha experiência como professor o desinteresse generalizado e a falta de sentido que os estudantes vêem na escola.
Na música Jesus Chorou do grupo de RAP Racionais MC’s há um trecho que diz: “Você sabe o que é frustração? É máquina de fazer vilão.” Sou obrigado aqui a admitir que nós educadores é que de certa forma produzimos aquilo que chamamos de “maus alunos”. Mas não há porque carregar este fardo sozinhos, há todo um sistema educacional que nos leva a isso. Devido as péssimas remunerações que muitas vezes recebemos, acabamos por trabalhar em duas, três, e até quatro escolas para conseguirmos realizar nossa sobrevivência. O resultado disso é que acabamos por não conseguir dar a devida atenção as particularidades de estudantes que estão em relação conosco, não desvendando estes milhares de universos que entramos em contato todos os dias e, por consequência de todo este processo, produzindo mais e mais estudantes – e professores – frustrados em suas atividades.
Com os prazos curtos que nos são colocados, as deficiências em nossa formação, enfim, todas as ausências que existem no processo de ensino-aprendizagem, acabamos por nos esquecer de que os espaços de ensino devem ser, antes de tudo, espaços de desenvolvimento humano, onde os potenciais de cada indivíduo são exponencialmente desenvolvidos através das relações deste com todos os outros presentes neste mesmo espaço. A escola deve ser um espaço onde todos, inclusive os pretensos educadores aprendem e ensinam. O grande problema é que, talvez, estejamos mais preocupados com notas, papéis, índices e burocracias do que com cada um dos seres humanos com os quais estabelecemos este belo vínculo que é ensinar e aprender. A Revogação do Novo Ensino Médio é necessária e é urgente, e o exemplo do Paraná é didático neste sentido.
Referências:
APP Sindicato. Fora Unicesumar: estudantes se rebelam contra a terceirização de cursos técnicos e boicotam EAD. Curitiba. 14/09/2022. Disponível em: https://appsindicato.org.br/fora-unicesumar-estudantes-se-rebelam-contra-a-terceirizacao-de-cursos-tecnicos-e-boicotam-ead/
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996. BRASIL.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
FARIA, Camila Grassi de Mendes. O Projeto de formação profissional da Confederação Nacional da Indústria e as políticas públicas de educação profissional: confluências entre o público e o privado na educação brasileira nos anos 2000. Dissertação de Mestrado defendida no setor de Educação da UFPR. 2014.
OLIVEIRA, Maria Lúcia. A Rebeldia e as tramas da desobediência. Editora UNESP. São Paulo. 2004.
PARANÀ. Diretrizes Curriculares Da Educação Básica Geografia. Secretaria de Estado de Educação. 2008.
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO – SEED DIRETORIA DE EDUCAÇÃO – DEDUC. Ofício Circular n.º 006/2023 – DEDUC/SEED, 03/02/2023.
Links:
https://educacao.uol.com.br/noticias/2023/02/10/material-professores-parana-educacao-financeira.htm
https://www.facebook.com/100063743154318/posts/645880760880023/
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