Quando fui informado sobre a morte do meu irmão eu estava no trabalho. Peguei um ônibus e cerca de 50 minutos depois desci no ponto próximo à casa da minha mãe. A família combinou de se encontrar lá. Dar a notícia a ela seria uma tarefa difícil. Um canteiro de grama separa o ponto de ônibus da rua onde fica sua casa. Cerca de 100 metros estão entre os dois pontos. Atravessar esse trecho, porém, foi o maior desafio que tive na vida. Não queria ser o primeiro a chegar e covardemente deleguei a tarefa à minha irmã, à minha cunhada e também à minha sobrinha. Por isso, parei diversas vezes no caminho. Meus joelhos ganharam vida própria e teimavam em dobrar cada vez que eu arriscava um passo. Depois de muito esforço cheguei. A notícia já tinha sido dada e os gritos que ouvi me acompanharão pelo resto dos meus dias.
Mas não escrevo esse texto pra narrar um quadro tétrico. Nem pra buscar comoção frente aos dias difíceis que estamos vivendo. Escrevo como registro deste momento ímpar. Para discorrer sobre o quanto ele poderia ser mais “suportável” se tivéssemos um presidente minimamente humano.
Hoje, dois dias após o sepultamento do meu irmão – que sucumbiu depois de mais de 20 dias lutando contra a Covid-19 – decidi colocar em letras algumas reflexões que as horas mais difíceis me trouxeram. Resolvi não embasar as informações aqui trazidas com estudos e pesquisas (a internet é rica em informação). E aos que sofrem de “amnésia conveniente” a web também pode trazer à lembrança algumas falas da família Bolsonaro.
Pensei muito se é possível culpar diretamente Jair Bolsonaro pela morte do meu irmão. E, sinceramente, não tenho embasamento pra isso. Minha mágoa me diz que sim, minha razão pondera que não. Entretanto, o desprezo do presidente, dos seus filhos e da legião que os acompanha para com as vítimas da pandemia é real e não carece de muitos argumentos para ser percebida.
Durante o velório, enquanto respondia as mensagens de solidariedade que chegavam, tive o desprazer de ver um vídeo do Eduardo Bolsonaro no qual ele mandava a imprensa e a população “enfiar as máscaras no rabo”. A voz hedionda do deputado competia com os gritos da minha família na capela mortuária.
Minha mãe, que se desfazia em dor. Minha cunhada, meus sobrinhos, sobrinhas, irmãos e irmãs. Todos num coro doloroso. Minha mãezinha, lutando para se manter em pé, empunhava uma máscara florida sobre o pequeno rosto. Idosa, doente e sepultando um filho. Impossível não pensar nos anos que ela e meu pai trabalharam dignamente para criar os sete filhos. Quantas dores, privações e humilhações se impuseram em décadas de trabalho. Quanto de imposto pago por eles ajudou a sustentar esse país. E agora, no momento de maior dor, um sujeito que sempre comeu, bebeu o gozou com o dinheiro público os manda enfiar a máscara no rabo.
O pai desse sujeito há mais de 30 anos vive por meio do dinheiro pago por contribuintes como minha mãe e meu pai. Recentemente disse que a dor deles é “mi, mi, mi”. Um presidente que, na contramão do mundo, prega, desde o início da pandemia, o lunático “tratamento precoce” que não tem efeito algum contra a Covid. Além disso, alardeia que são desnecessários o isolamento social e o uso de máscaras. Lutou fortemente contra a chegada da vacina e ainda se esforça muito para dificultar a vacinação. A lista de desumanidades de Jair Bolsonaro durante a pandemia é enorme. Impossível não pensar na diferença entre as famílias. A minha, martirizada pela dor, mas unida no amor, e a deles embriagada pela ilusão do poder e unida pelo ódio.
No Brasil, assim como minha família, quase 300 mil precisam conviver diariamente com o vazio da perda. Com a falta da voz, da risada, do cheiro, da presença. Nenhuma tabela ou gráfico pode mensurar as consequências que a morte gera. Nenhum cientista social, antropólogo ou cientista político pode descrever os danos. Imensurável é o estrago que essas mortes causaram. Quantas mães, filhos, filhas, esposos e esposas têm como maior desafio do dia levantar da cama, fazer café, almoçar, trabalhar…
Podem existir argumentos que tentam justificar a demora na vacinação; que tentam sustentar dúvidas quanto às posições políticas da Organização Mundial da Saúde; que tentam mostrar que imprensa e alguns governadores se aproveitam da pandemia para fins políticos. Mas não há argumento algum para tripudiar sobre a dor das famílias. Não há graça no choro das mães e das filhas. Nada justifica o prazer sobre os gritos aterrorizantes de quem sepulta um dos seus.
Porém, para mim, há um alento nisso tudo. Meu irmão foi grande. Não, na verdade foi gigante, fabuloso. Ele e minha cunhada criaram uma família linda. Um filho e duas filhas incríveis. Trabalhadores, pesquisadores. Lutadora pela inclusão das crianças com deficiência e, pasmem, uma estudiosa sobre a Covid-19. Meu irmão tem tanto orgulho de vocês… e eu também.
Ah… Marcos Aurélio Pires foi gigante. Vocês não imaginam que prazer foi ter sido irmão desse sujeito. Lindo, grande, alegre, amoroso. Que presença meu Deus. Sua visita era capaz de sufocar qualquer mágoa, qualquer desespero. Não deixou a desejar em nenhum dos campos da vida. Partiu em paz. Sem mágoas, sem ressentimentos, sem dores.
Seu enterro foi próximo do meio dia, com o sol a pino. Um vento tão suave abraçava a todos nós. Ao lado de uma floresta de pinos jaz o seu corpo. Seu espírito, a meu ver, mergulha nas imensidões do universo neste momento. Aplausos. Família e amigos reconheciam, do fundo do coração e sem buscar nenhuma recompensa por isso, a grandeza dele. Se foi, mas fez tanto que nem o tempo poderá apagar seu legado.
Lamento por Bolsonaro e sua família. Nunca terão o amor verdadeiro. Todos que os cercam ou esperam vingança contra a esquerda, ou a oportunidade de se armar para confrontar o desafeto, há aqueles que aguardam um cargo, uma verba, um favor…
Meu irmão foi para o grande encontro com o universo. Gigante como sempre, deixou nos que aqui ficaram apenas o amor e a saudade…
PS: Um agradecimento especial a todos os profissionais de medicina que cuidaram dele. A todos os médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras. A todos e todas que trabalharam na limpeza da UTI onde ele estava para que infecções e outros males não o afetassem. Um agradecimento a todos os amigos que mandaram mensagens. E um agradecimento maior ainda às amigas que foram um pilar no qual me sustentei nesses dias difíceis.
À minha família posso dizer que fomos muito felizes ao lado do Marcos e que ele foi muito feliz ao nosso lado.