Coluna Filosofia Di vina
Hoje, por volta das sete da manhã, uma moça estava deitada quase no meio da pista da Marechal Deodoro no centro do centro de Curitiba. Seu corpo jovem parecia aconchegar-se no asfalto bruto, mas seu rosto retorcido era de desconforto e dor.
Olheiras profundas acusavam que não dormira bem nas últimas noites. A multidão se aglomerava, eram seus minutos de fama, mesmo que permanecesse anônima. Quem sabe um dia tivesse sonhado em ser famosa como todos nós sonhamos em algum momento da vida.
Alguns reparavam na tímida gota de sangue que saia de seu ouvido, uns, balançando a cabeça em lamento, diziam que aquela mínima gota era prenúncio da fatalidade, outros comentavam em murmúrio o rasgo na meia-calça, o que encorajou algumas senhoras a debaterem se o furo fora feito com a batida ou se ele acusava uma condição social.
Nenhum amigo, nenhum parente por perto. Somente o lamento de estranhos. Nenhum amor ao lado para se descabelar, nenhum grito de desespero, só o vento frio da manhã ousou afagar aqueles cabelos. Seu anonimato reflete o nosso anonimato. Qualquer um de nós pode simplesmente deitar e deixar tudo para trás, coisas inacabadas, sonhos abandonados e pilhas de protelações justificadas com alguma desculpa por não ter feito o que queríamos. Todos temos malas cheias de “ainda é cedo” ou “já é tarde demais” escondidas nos escuros corredores da nossa existência. As canelas brancas roídas pelo asfalto faminto não tinham cicatrizes.
O que fez com que ela atravessasse na frente do carro? Será que fugia da solidão de mais um dia? Será que em algum balcão da cidade se fazia sentir sua falta? Será que um chefe gordo de óculos pendurados não berrava mais um atraso?
Nenhum amor ao lado para se descabelar, nenhum grito de desespero, só o vento frio da manhã ousou afagar aqueles cabelos
Se tinha sonhos, se tinha amores, nunca saberemos. Quem sabe nunca mais poderá descer do ônibus reclamando do cansaço de mais um dia e, ganhando um beijo, se aliviar de uma vida não escolhida. Ela que não poderá dar mais um oi, jamais teve a chance de dizer adeus. O dia é muito corrido e a cidade não pára para saber disso, em breve chegará a ambulância trazendo outros curiosos e espantando os velhos, os novos, embalados pelo canto lúgubre das sirenes, os velhos darão a notícia vaga aos que chegam.
Depois disso, o trânsito voltará a fluir, alguns motoristas reclamarão do congestionamento, ela provavelmente virará notícia em programa de rádio da AM e assunto na hora de intervalo. Ela ali, deitada, indiferente à cidade e a cidade, gigantesca ao seu redor, indiferente à ela, e a vida seguirá, talvez não para todos.