Por Mário Costa
Não sei o porquê insisto em remoer problemas, rever esquemas, estratégias, falas, corrigir colocações e a ainda ter a quase certeza que não fui claro, talvez, seja por isto, que explicar demais, logo, por algum motivo, é ter a consciência de culpa, se defender tendo o poder do argumento com a possibilidade de trilhar vários caminhos, sabendo que mesmo fazendo tudo certo, ou quase tudo certo, no fim vai dar errado. De certo este seja o meu problema pensar nas variáveis.
Para amor acredito que estas variáveis, conjecturas, não se aplicam. Pra mim é como Gilberto Gil diz em Drão, com a voz embargada, “os pecados são todos meus, Deus sabe a minha confissão, não há o que perdoar” ou para a banda Maglore “se antes não fosse, se agora fosse, mudaria alguma coisa no final?” é o melhor que conseguimos fazer dentro das condições de temperatura e pressão a que estávamos submetidos naquela ocasião e ponto final, mas dá uma saudade e a gente vai seguindo em frente se esbarrando para se encontrar. Senhoras e Senhores, 29 de abril, o dia que o meu coração foi partido.
Foi numa sexta-feira, 2016. Estava na casa da Cibele ensaiávamos para a apresentação que aconteceria no Paço da Liberdade. Cibele é como irmã de cor, de alma negra, costuma dizer que no passado fora uma prostituta, carismática, conta histórias com riqueza de detalhes lhe faz sentir o cheiro do momento, dá a entonação certa a palavra, imita as pessoas, trejeitos, caretas, “Cibelinha a vovó vai fazer um trabalho de caridade, um trabalho para Deus, fica aqui!” te transporta para dentro das histórias, com ela não me sinto tão estranho. É uma pessoa saborosa que dá gosto de conversar, somos amigos. Bons amigos. Uma pessoa linda que não consigo descrever sem exceder as palavras.
Naquela sexta resolvi não delongar tanto quanto costumava fazer com a Cibele, ensaiamos, organizamos como deveria ser o show, entrada, saída, você canta essa depois entro falo algumas coisas e te chamo. A música segundo ela com sotaque do interior da Inglaterra estava “Perrrfeita”. Então agradeci o café, o chá, a comida e me despedi. Havia algum tempo que não saia para baladas, tenho dessas coisas ficar recluso dar um tempo da folia, às vezes acho que isso não agrega em nada e noutras penso que são coisas da vida, faz parte manter o equilíbrio entre a opressão do cotidiano e o alimento das nossas utopias. Resolvi sair da casa da Ci e tomar uma cerveja, curtir um som.
Aquela morena de calça colorida, camisa preta e com um poncho indígena, acho que era um poncho ou talvez fosse um cachecol comprido. Não reparei muito nos detalhes do seu rosto, no corpo, acho que foi no toque das mãos e na música que dançamos, mal dançamos, acho que foi horrível, tentei beija-la logo que acabou a música. Parece algo irracional, primitivo, mas acredito que gostei dela pelo cheiro pus o nariz no seu pescoço entre os seus cabelos passando pela orelha em direção a boca, foi o cheiro. Ela desviou o beijo.
Estávamos numa balada na Trajano Reis, ao som de Charles Racional e terminamos no Gato Preto, com um beijo na pista, com o cheiro da fumaça do cigarro, costela, prostitutas e Odair José, perfeito. Contarei aos nossos filhos um dia ou aos meus. Levei-a para casa contei meus problemas “meus pais morreram… moro sozinho, inventário, também estudei na PUC… Ah! Você fez Direito? Mestrado, constituição…” por aí vai. Na verdade, só eu falei lembro pedaços de uma conversa como diz “falaaaa um monte de coisa”, noutros momentos nem tão gentil “fala um monte de merda”, enfim. Nos beijamos e fui embora.
Combinamos, novamente, de nos encontrar na apresentação do Paço da Liberdade em que Cibele Deffune iria apresentar The Only Good Notes (Somente as Melhores Notas) e daria uma canja com a minha música Ao amanhecer. Estava tão nervoso neste dia que mal conseguia levantar da cama, lembrei de Gilberto Gil no Festival de 67, claro, tomadas as devidas proporções, estava estático, paralisado, não conseguia pensar numa roupa para vestir. Fui ajeitar o corte de cabelo e o barbeiro cagou no contorno fiquei com uma testa enorme, entrou demais com a navalha, famoso tira só as pontas e você sai com corte Joãozinho. Nada mais podia piorar aquela apresentação. A casa ficou uma bagunça guitarra jogada pro um lado, calças, camisas, já não sou muito organizado casa de artista, sabe como é, ficou uma zona. Tudo bem. Vamos a apresentação, respira fundo vai dar tudo certo.
Camarim aquela conversa distraída os artistas reunidos, fotos, um drink para descontrair, efemeridades, da certa curiosidade de olhar entre as cortinas, aquela espiada, ver o público chegando, confesso a ânsia aumenta, casa cheia, um bom show é sinal de sucesso ou estrondoso fracasso caso algo saia do roteiro. Sabe essas coisas esquecer a letra, desmaiar, tropeçar, quebrar a perna antes do espetáculo ou no decorrer dele, sair do roteiro. Cibele me chamou “agora vou chamar o Mario Costa, jornalista e compositor”, entrei sem olhar para os lados até procurei aquele sorriso na multidão, não vi nada, pensei “putz! Ela não veio” … Calma, acho que mandou mensagem dizendo que estava na bilheteria, foi isto. Estava com um pacote de poesias, pacote mesmo igual esses de pão.
No palco, devidamente paramentado com o broto de rosa na cabeça do violão e no paletó azul petróleo com cinza, expliquei brevemente a canção Ao Amanhecer. Compus para o meu irmão quando o vi andando numa comunidade vulnerável, com uma criança no colo, blusa de lã rasgada, é isto então que o amor nos reserva? Alguém que muito me inspirou naquela situação que nada me agradava. Como diz a música “isto é o melhor que tem para mim agora? Vejo que a solidão já não é tão ruim assim/Quando já não bate ao meu peito o amor que chegou ao fim…Aahhh” é um verdadeiro grito de liberdade e de solidão, também.
Tocamos, deu tudo certo, Uffa! Agradecimentos, vivas, catarse, desci do palco me dirigi a quarta fileira do lado esquerdo, avistei-a de longe do outro lado calça bordô, blusa marrom cabelos pretos, compridos, presos? Não lembro. Demorei, metade de uma música para decidir ir até ela, mas o fiz com ímpeto, vontade, tremendo nas calças, coragem homem, sentei ao seu lado lhe dei um beijo, tirei a rosa do paletó e dei, ficou em suas mãos girando-a pelo talo até que guardou no saco de pão de poesias. Durante esta noite e ao longo dela beija-a por muito mais vezes, em lugares diferentes em frente ao bar Mafalda, pelo seu corpo, “carne macia é carne de Caju” no melhor Alceu Valença, como Cibele diz apenas as melhores notas, os acordes que soam macio ao ouvido, o gemido daquela voz, seu cheiro, aquele olhar doce e extasiado.
Nos ficamos juntos por exatamente dois meses. Brigamos durante quase dois anos até ela ir para o Mato Grosso, nunca lhe disse “eu te amo” e nem lhe dei o último beijo, puro egoísmo. No encontro entre o Direito e Filosofia, as artes, nos dois perdemos, ninguém ganhou. Explicar demais, mesmo com o poder do argumento, é saber que no final daria errado, acabaria. Gilberto Gil tem uma visão mais ampla que a minha sobre o amor que se transforma cumpre a sua função “vive, nasce, trigo, cresce, morre, pão” volta a ser alimento. Poderia continuar este texto falando do abraço forte do reencontro que aconteceu uns dois anos atrás, fiquei com dor na coluna, do monstro de olhos verdes que é o ciúme que ela odeia, elencando a série de nãos “não ficaremos mais juntos”, “não alimente mais isso”, “eu não me comprometo”, “não é assim que se dança” e, ainda, “sobe em cima do palco”, “vitimismo”, Opa! Melhor parar por aqui. Isto tudo seria pensar como a canção Dança Diferente, da banda Maglore, “se antes não fosse, se agora fosse, mudaria alguma coisa no final?”. Conjecturas que me trazem ao mesmo lugar a saudade, a lembrança do dia 29 de abril de 2016, ao contentamento e, ao mesmo tempo, o entendimento de uma história contada por vários olhares e visões diferentes tem a mesma resolução no final. O amor bem como a música neste momento é silêncio, pausa, término. Mas, a gente vai seguindo em frente se esbarrando para se encontrar e enlouquecendo para se curar. Feliz aniversário, meu cheiro.
Fonte
Cibele Deffune – The Only Good Notes
https://www.youtube.com/watch?v=5Lbg_wL06L0
Dança Diferente – Maglore
https://www.youtube.com/watch?v=Vj5VvmDtME0
Drão
https://www.youtube.com/watch?v=6vPPCooBoP0